Samuel Pessôa
Ainda a poupança
A correção dos erros da chamada 'nova matriz econômica' produzirá forte contração dos salários
Meu colega Marcelo Miterhof, que ocupa este espaço às quintas-feiras, insiste em que minha insistência em apontar a elevação da poupança pública como a medida mais importante para que os juros caiam de forma sustentável na economia significa que eu e os demais ortodoxos somos adeptos do pensamento clássico que alegava ser necessário haver poupança prévia para financiar o investimento.
Imagine, leitor, uma economia com desemprego de fatores. Há trabalhadores sem emprego, empresas sem pedidos, máquinas paradas etc. Um empresário com boas ideias vai a um banco e consegue um empréstimo para construir uma fábrica.
O empreendimento é bem avaliado pelo gerente do banco. O empresário sai da agência bancária com os recursos em sua conta-corrente creditados pelo banco em razão da concessão do crédito.
Esse recurso não é poupança econômica. Trata-se de poupança financeira. São números criados eletronicamente em nome do empresário a partir das regras de funcionamento dos bancos comerciais regulados pelo Banco Central.
Com o poder de compra da poupança financeira, o empresário contrata trabalhadores, empresas construtoras, compra máquinas etc. O produto da economia se elevou. Adicionalmente, o pagamento do empresário aos fornecedores e trabalhadores empregados na construção da fábrica gera novas demandas que irão ativar outros setores da economia.
Uma parte da renda gerada com o crescimento econômico produzido pela decisão do empresário de empreender gerará a poupança econômica que financia o investimento. Parte da renda gerada não será consumida.
No entanto, se a economia estiver a plena carga, o empresário, ao contratar trabalhadores, precisará, por exemplo, pagar horas extras ou retirar trabalhadores que estão em outros setores. Em um caso o preço irá aumentar, e, no outro caso, outros produtos deixarão de ser produzidos, pressionando os preços desses bens. A poupança que financiará o investimento seguirá da redução forçada da renda real, principalmente dos trabalhadores, que ocorrerá por causa da aceleração da inflação.
Em ambos os casos --com ou sem ociosidade generalizada de fatores de produção--, a poupança não é nem prévia nem posterior. A poupança é simultânea. A diferença é que num caso o processo é sustentável e no outro caso não será. A percepção de que a inflação se acelera ensejará um processo de remarcação de preços e salários que termina em hiperinflação e desorganização do sistema produtivo. Vivemos essa situação nos anos 1980 e 1990, e a Venezuela vive hoje.
Assim, quando estamos a plena capacidade, políticas que estimulam a elevação do investimento precisam ser acompanhadas de políticas que ampliam a poupança para que esta seja criada simultaneamente ao crescimento do investimento de forma sustentável.
A maneira mais simples de o setor público estimular a elevação da poupança doméstica é elevando a sua poupança.
Na primeira metade da coluna de quinta passada, Marcelo sugeriu que as pessoas que criticam o regime de política econômica instituído desde 2009 conhecido por "nova matriz econômica" o fazem por serem contra aumentos de salários.
Não conheço nenhum profissional de economia que seja contra aumentos de salários. Os críticos da nova matriz econômica, entre os quais me incluo, a criticam por ela ter colocado a dinâmica da economia em rota não sustentável: inflação acima de 7%, deficit público acima de 6% do PIB, deficit público primário de 0,6% e deficit primário recorrente de 1,5% do PIB, além de um deficit externo de 4,1% do PIB. Adicionalmente, a péssima qualidade da política microeconômica fez a taxa de crescimento do produto potencial despencar de pouco menos de 4% para pouco mais de zero.
A correção dos erros da nova matriz produzirá forte contração dos salários: como ocorreu nos anos 1960, quando se corrigiram os excessos do plano de metas; ou nos anos 1980, quando se corrigiram os excessos do governo Geisel; ou no segundo mandato de FHC, quando se corrigiu a política fiscal errada do primeiro. A redução de salário real infelizmente também ocorrerá nos próximos anos, ao corrigirmos os erros da nova matriz.