Entrevista - Hussein Kalout
Itamaraty passa por crise de planejamento e gestão
Brasileiro, pesquisador de Harvard afirma que diplomacia sofreu com a falta de interesse de Dilma no primeiro mandato
A diplomacia brasileira sofreu, no primeiro mandato de Dilma Rousseff, com o desinteresse da presidente pelo tema e a falta de planejamento do Itamaraty. Mas, dada a conjuntura internacional difícil do período, os resultados da política externa não são desprezíveis.
A opinião é do brasileiro Hussein Kalout, professor de relações internacionais e pesquisador da Universidade de Harvard e do Center for Strategic and International Studies, ambos nos EUA. Leia sua entrevista à Folha:
-
Folha - É visão predominante entre analistas de política externa que Dilma deu pouca importância à área em seu primeiro mandato. Há alguma indicação de que isso mudará?
Hussein Kalout - O Brasil acumulou ao longo das últimas duas décadas importante capital político nas relações internacionais, especialmente no governo Lula. No governo Dilma, faltou intensidade ao principal vetor que impulsiona as grandes ações de política externa, que é a diplomacia presidencial.
Não se pode negar que houve uma desaceleração do ativismo diplomático. Mas os resultados não podem ser descritos como ruins se avaliarmos as linhas macroestruturais da política externa.
A América do Sul passou por circunstancias difíceis e o Brasil foi capaz de zelar pela estabilidade regional.
Os Brics deram um passo importante para a criação de uma nova ordem geoeconômica. O Brasil venceu o pleito para ocupar a direção da OMC. Também liderou os debates sobre mudança climática e governança global de proteção de dados.
A relação com os EUA estava de vento em popa até o escândalo de espionagem.
O que precisa ser feito para recuperar o prestígio do Itamaraty?
O ministério passa por uma crise sintomática de planejamento e gestão. É necessário implementar uma ampla reforma administrativa, e isso significa contemplar mudanças no método de gestão.
Para a execução de boa parte das ações estratégicas como as cúpulas do Rio+20, Brics, Unasul ou até de missões oficiais do alto escalão ao exterior, os recursos praticamente não sofrem contingenciamento. Porém, o corte orçamentário constrangeu o desempenho de missões técnicas e afetou direitos dos quadros da carreira do serviço exterior como auxílios pecuniários importantes para o exercício da profissão.
É possível prever uma distensão na relação com os EUA?
O Brasil foi altivo e correto no diálogo com a administração Obama ao externalizar, sem rodeios, o seu descontentamento com o caso da NSA. Setores estratégicos vitais do Estado brasileiro foram alvo de espionagem: defesa, energia e telecomunicações. A iniciativa da retomada do diálogo, em boa medida, depende do governo americano. Para restaurar o nível de confiança, o Brasil quer gestos concretos e não promessas vagas de apreço.
Recalibrar o diálogo requer três ações concretas de Washington: alçar as relações entre Brasil-EUA ao nível de parceria estratégica; estabelecer um engajamento sistemático em alto nível, em vez de diálogo esporádico; e apoiar expressamente a aspiração do Brasil ao Conselho de Segurança da ONU.
A Rodada Doha está praticamente morta. Dilma tende a priorizar outras formas de abertura de mercados?
Não são fatores excludentes. O multilateralismo é a melhor raia de navegação e de defesa dos interesses brasileiros. Se a Rodada Doha está quase morta não é por causa do Brasil. Quanto às outras formas de abertura de mercados, o engajamento do setor industrial é fundamental. O Brasil está aquém de suas capacidades e tem potencial para ser ator mais importante no comércio global.
O que esperar da atitude brasileira em relação a vizinhos como a Venezuela?
A Venezuela é um país complexo e dividido. A contribuição do Brasil somente seria positiva se, primeiramente, conseguir manter o diálogo com governo e oposição. Hostilizar a Venezuela ou adotar postura condenatória não soluciona o problema.
Muito se fala que o Brasil tem uma diplomacia "ideologizada". Há alguma perspectiva de que isso mude?
A diplomacia brasileira sempre foi permeada, ainda que em menor grau, por um coeficiente de ideologização.
Basta fazer uma regressão histórica e ver a diplomacia na Era Vargas, dos governos militares ou FHC e agora com o PT. Seria uma ingenuidade acreditar que a "ideologização" é invenção recente.
Basta ver a atuação de homens como Oswaldo Aranha, San Tiago Dantas, Juracy Magalhães e Celso Lafer. Atores políticos que operam temas diplomáticos são escolhidos, essencialmente, em virtude de sua lealdade política e seu alinhamento ideológico.
Qual tende a ser o principal elemento de continuidade da diplomacia de Dilma e qual o de maior ruptura?
Nos últimos quatro anos, a conjuntura global não foi propícia para ativismos. As linhas macroestruturais do Brasil são a cooperação Sul-Sul, reforma das instituições multilaterais e a configuração de uma nova geometria global financeiro-comercial. O desafio de Dilma será consolidar uma política externa fundada em uma visão estratégica de longo prazo. Mas sem diplomacia presidencial, as iniciativas perdem fôlego.