Acusada de apoiar rebeldes, Rússia dá abrigo a ucranianos
Governo Vladimir Putin busca atrair a simpatia dos refugiados, apesar da suspeita de armar separatistas
Moscou diz que 915 mil ucranianos cruzaram a fronteira russa fugindo de conflito entre Kiev e províncias do leste
No último dia 22 de novembro, a ucraniana Valentina Petrovna, 60, decidiu deixar a cidade de Lugansk com o neto Kiril, de seis anos. Três meses antes, seu filho e a nora, pais do menino, morreram vítimas de bombardeio do conflito no leste entre separatistas e forças da Ucrânia.
Avó e neto atravessaram de ônibus a fronteira com a Rússia e chegaram a Neklinovsky, a 30 km da fronteira entre os dois países, na província de Rostov-do-Don, a principal porta de entrada russa dos que fogem do front.
Eles se juntaram a outros 600 ucranianos que vivem hoje em um clube de lazer infantil transformado em abrigo de refugiados.
Um quadro com a foto do presidente da Rússia, Vladimir Putin, e do primeiro-ministro, Dmitri Medvedev, decora a sala da funcionária do governo Angelica Vasilevna, 40, que cuida dos cadastros dos que chegam.
Svetlana Golodink, 34, está no abrigo desde setembro com a filha Helen, 5. Abandonou Debaltseve, palco de recente confronto vencido pelos rebeldes, que obrigaram as forças de Kiev a recuar.
"Meu marido ficou lá trabalhando, numa estação de eletricidade. Veio nos visitar em dezembro e falamos ao telefone quando possível. Não dá para voltar", diz Svetlana.
Uma vez por semana, sua filha, o neto de Valentina e outras 30 crianças participam de uma atividade escolar.
"Não é difícil distraí-las porque a maioria não tem ideia do que ocorre", diz o professor Maxim Alexeevich.
Os separatistas controlam as regiões de Donetsk e Lugansk. Nesta última vivia até pouco tempo atrás Irina Gozman, 55, que fugiu para a Rússia com a mãe Olga, 77, e o marido, o engenheiro Sergei, 59. Um filho de 27 anos acaba de chegar e outro, de 35, já conseguiu emprego na cidade russa de Bergorod.
Cada passo dos refugiados é controlado pelas autoridades. A Folha entrou no abrigo na última quarta-feira (25) após a funcionária Angelica consultar membros do governo para liberar o acesso.
Na estação central de trem de Rostov-do-Don, o saguão principal está isolado para os refugiados que serão enviados a outras cidades russas.
A polícia autorizou a reportagem a visitá-lo, mas impediu o registro de imagens.
Com malas que carregam roupas e objetos de casa, dezenas passam dias ali à espera de aval para seguir viagem.
O casal Dimitri Fedorento e Ana, ambos 33, havia acabado de chegar de Donetsk com a filha de dois anos. Queriam ir a Iekaterinburgo, quarta cidade mais populosa da Rússia, onde a mãe de Dimitri está há dois meses.
O Acnur (Alto Comissiariado da ONU para Refugiados) acredita que 1 milhão de pessoas deixaram a região do conflito desde abril passado. Estima-se que 5,2 milhões viviam na área até então. Segundo o órgão, 600 mil buscaram ajuda em países vizinhos, não só na Rússia.
O governo russo joga com outros números. Balanço divulgado há duas semanas pelo Serviço Nacional de Migração diz que nesse mesmo período 915 mil ucranianos atravessaram a fronteira da Rússia --pelo menos 40 mil estariam vivendo só na região de Rostov-do-Don. Uns chegam com o desejo de um dia voltar para casa, outros querem viver de vez na Rússia.
Segundo Moscou, 288 mil já receberam asilo temporário, 190 mil algum tipo de status de residência e 68 mil obtiveram a cidadania russa.
A Folha encontrou uma casa no centro de Rostov-do-Don com 127 ucranianos, dos quais 23 crianças.
Há inclusive a família de um rebelde morando no local. Galina Popkova, 28, mudou-se com os dois filhos, Angelina, 6, e Maxim, 1. Ela contou que o marido ficou em Mariupol, um dos focos do conflito, como combatente separatista.
CÁLCULO POLÍTICO
O cenário mostra que o presidente Vladimir Putin está cada vez mais disposto a abrir as portas da Rússia, embora a Ucrânia afirme que Moscou tem superestimado os números de refugiados.
Putin é acusado pela Ucrânia e pelas potências ocidentais de apoiar militarmente os separatistas, de olho no controle da região em um futuro próximo.
O cálculo do dirigente russo tem sido negar que esteja ajudando os rebeldes, mas buscar a simpatia dos ucranianos do leste e o enfraquecimento do presidente do país vizinho e inimigo político, Petro Poroshenko.
Putin mira o saldo político, mas paga uma conta cara para uma Rússia cada vez mais frágil economicamente: pelo menos 11 bilhões de rublos (R$ 520 milhões), de acordo com o próprio governo, já foram gastos para receber ucranianos da área de conflito.
A disputa no leste começou em abril de 2014, semanas depois que a Crimeia, então pertencente à Ucrânia, foi anexada pela Rússia, em meio à invasão da península por tropas pró-Moscou.
Estima-se que pelo menos 5.000 pessoas tenham morrido no conflito, que passa por um momento de tentativa de trégua após longa negociação entre líderes de rebeldes separatistas, Ucrânia, Rússia, Alemanha e França.