Consenso que sustentou Cristina continuará, diz jornalista
Para argentino Ceferino Reato, 'endeusamento do Estado' surgiu na crise de 2001 e ainda influencia eleição
A gestão de Cristina Kirchner na Argentina chega ao fim em dezembro, encerrando 12 anos da era kirchnerista.
No livro "Doce Noches" [doze noites], o jornalista Ceferino Reato, 53, afirma que os dois últimos presidentes são filhos da crise econômica e política que colapsou o país em 2001. "A 'chefa' se vai", acredita o jornalista. Mas os ventos que a sustentaram no poder permanecem.
Leia trechos da entrevista.
Folha - No seu livro, o sr. diz que os Kirchner são filhos da crise de 2001. Poderia explicar?
Ceferino Reato - Eles entenderam os valores e crenças da maioria dos eleitores que surgem na crise de 2001.
É um consenso distinto do dos anos 1990, quando acreditamos que o mercado resolveria tudo. Privatizamos a YPF [empresa de petróleo] e vendemos até o "golden share", que permitia ao governo tomar as decisões na YPF.
Fizemos isso alegremente. Depois da crise, passamos de uma visão privatista a um estatismo ingênuo. Estatizamos até o futebol [o governo paga pela transmissão de jogos na TV aberta]! Isso é resultado de um novo consenso, em que pensamos que tudo o que é do Estado é melhor.
Como surgiu esse consenso?
A crise de 2001 deixou sem emprego quase um terço da força de trabalho. Havia poucos direitos sociais e ausência de contenção social. Empresas privadas viraram entidades suspeitas. O que importava era o Estado e o emprego.
Houve um endeusamento do Estado e valorização exacerbada de tudo o que é produto nacional. Mesmo que esse consenso não seja mais tão forte, influencia a eleição.
Como influencia?
O opositor Mauricio Macri mudou seu discurso em direção ao estatismo. Isso tem a ver com o convencimento de que, para ganhar uma eleição, é preciso ter os votos de quem teme voltar à época em que o Estado não protegia.
Esse momento me recorda 1999. Todos sabíamos que havia um problema em manter a paridade do peso com o dólar. Mas as pessoas temiam a mudança, e Fernando de la Rúa se elegeu prometendo manter a paridade. Como àquela época, hoje há um fim de ciclo que não se quer ver.
Foi o kirchnerismo o criador desse consenso social?
Não, de maneira nenhuma. Tanto que Cristina vai embora e o consenso que permitiu sua sustentação ficará.
A Argentina está em crise?
Não, crise foi em 2001. Temos um problema que resolveremos a partir de 10 de dezembro [quando assume o novo presidente]. Todos esperam que seja necessário corrigir o atraso cambial [desvalorizar o peso], mas os políticos não querem admitir. Os argentinos se salvam com o que têm: compram dólares, o que podem. O país vive os últimos meses de liquidação.
O que o kirchnerismo deixa de positivo para a Argentina?
A estatização da YPF resultou em algo positivo com a descoberta [da reserva de gás e petróleo] de Vaca Muerta. Também investiram muito em cultura e em universidades.
Com isso, o núcleo de apoio do kirchnerismo não é a camada mais popular, mas uma classe média que sente não ter os saberes apropriados a um mercado mais aberto e competitivo. Por isso desejam e precisam do apoio do Estado.
Como vê o candidato que representa o kirchnerismo?
Daniel Scioli é um político muito mais liberal do que quer se mostrar. Vem de família abastada. É o candidato que Cristina não queria. O kirchnerismo é tão focado em Néstor e Cristina que não pôde produzir um herdeiro.
O kirchnerismo acaba com o fim do mandato de Cristina?
Sim. Após 2001, a reconstituição da autoridade do presidente foi forte. Tudo depende do presidente, e o governo federal tem muita força sobre províncias e prefeituras.
Se Scioli vencer, parte do kirchnerismo vai se converter em sciolismo. Será uma guinada à moderação. Ele é mais Miami que Havana, é uma pessoa de centro-direita.
Se Macri ganhar, o kirchnerismo sobrevive?
Os kirchneristas chegaram a pensar que sim, que poderiam seguir controlando o peronismo. Mas não acredito. O kirchnerismo foi uma corrente política hegemônica de um consenso que segue sendo majoritário, mas que vai se modificar. A "chefa" se vai.