Entrevista - Álvaro García Linera
Crise da esquerda latino-americana é desvio temporário
Para o Vice de evo Morales, governos da região oneraram Investimento privado com ajuste e descuidaram de setores sociais
A crise da esquerda da América Latina é transitória.
Essa é a tese de Álvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia. "Alguns vão dizer que é o fim da esquerda", afirmou à Folha García Linera, que esteve no Brasil a convite do Instituto Lula. "Mas eu tenho esperança de que seja um desvio temporário, relacionado à substituição de lideranças, como no caso da Venezuela e Argentina, e aos efeitos da crise econômica."
Para ele, a esquerda incorreu em dois erros: descuidou dos vínculos com os setores sociais e teve dificuldades para distribuir o peso do ajuste econômico.
García Linera está preocupado com a possibilidade de uma guinada conservadora no Brasil. "Um governo conservador no Brasil seria uma catástrofe para a América Latina". E deixou claro que a Bolívia irá bloquear qualquer tentativa de integração entre o Mercosul e a Aliança do Pacífico enquanto o Chile não der ao governo boliviano a almejada saída para o mar.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista, concedida em São Paulo.
Folha - Nesta segunda (5), o senhor disse que "a América Latina e o processo progressista dependem do que venha a acontecer com o Brasil". O que queria dizer?
Álvaro García Linera - O Brasil tem a maior economia e a maior população da América Latina. A existência de governos de esquerda no Brasil na última década criou espaço para o desenvolvimento de governos revolucionários e progressistas no resto do continente. Sempre que países da região foram alvo de ataques antidemocráticos, o Brasil foi uma voz de respeito às instituições e às decisões de cada país. Seria terrível para o continente uma postura diferente do Brasil.
O Brasil discute a possibilidade de um processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff. Isso mudaria as relações com a Bolívia?
Estamos atentos e observando. Posso dizer minha opinião: a existência de governos de esquerda no Brasil ajudou o desenvolvimento da América Latina em sua soberania e em particular na Bolívia. Um governo conservador no Brasil, complacente com atitudes antidemocráticas e intervencionistas, seria uma catástrofe para o continente.
Esperamos que isso não ocorra no Brasil. Mas não posso me intrometer na política interna brasileira.
O senador boliviano Roger Pinto recebeu recentemente o status de refugiado. Como o senhor vê isso?
Lamentamos. Roger Pinto está no Brasil não porque seja um ideólogo da oposição: ele roubou dinheiro público e fugiu. Nós não recebemos corruptos como refugiados.
A Bolívia apoia a aproximação e um eventual acordo entre o Mercosul e a Aliança do Pacífico, mesmo que Bolívia e Chile não tenham relações diplomáticas por causa do contencioso sobre a saída para o mar?
A integração passa obrigatoriamente pela resolução da saída da Bolívia para o oceano Pacífico.
A Assembleia Legislativa da Bolívia aprovou uma mudança constitucional que permite ao presidente Evo Morales tentar um quarto mandato em 2019 (a decisão ainda precisa passar em referendo). Isso não ameaça a democracia?
Alguém questiona a democracia da Alemanha? Na Alemanha também não há limite de reeleição, e todo mundo a qualifica como país altamente democrático. É curioso.
A América Latina também é muito democrática. Há a possibilidade de que as pessoas elejam o presidente Evo de novo. Isso é altamente democrático, porque o povo vai participar e decidir.
O senhor viveu a ascensão da esquerda latino-americana. Como vê o que está ocorrendo com a esquerda no Brasil e no resto da região hoje? Há uma crise?
É um desvio temporário, que está relacionado à substituição de lideranças, como no caso da Venezuela e Argentina, e aos efeitos da crise econômica. São desafios que põem à prova a fortaleza e o vigor dos processos progressistas e revolucionários. Não é um destino inescapável.
Alguns vão dizer que é o fim da esquerda. A direita vai dizer, mas já dizia desde o início. Na Bolívia, prediziam uma catástrofe por ano: quando assumimos eles previam incapacidade para governar, depois inflação, corrida aos bancos, falta de gás, apagão. A direita sempre vai ter um pretexto para dizer que vamos cair.
À esquerda mais radical, que vê com entusiasmo esse desvio, é preciso dizer: a experiência ensina que, depois dos governos progressistas, o que vem não é um governo ultrarrevolucionário, o que vem é a direita. Aconteceu na Bolívia em 1971 e 1985.
Então, essa suposta esquerda mais radical que bate palmas e vê com entusiasmo esse desvio, pensando que agora é a vez dela, está errada. Eles estão criando as condições para um regresso conservador. Tenho esperança de que este será um desvio temporário.
Alguma autocrítica sobre erros cometidos pela esquerda?
Cometemos muitos erros, porque além de tudo somos uma geração que nunca tinha estado no governo.
Erros que precisam de autocrítica: relacionamento com os setores populares e a maneira como se distribui o peso econômico do ajuste, para que não paralise o investimento privado. E precisamos relançar nossos vínculos com os setores sociais.