Carlos Heitor Cony
O equívoco
RIO DE JANEIRO - Em meio à correspondência recebida, geralmente impessoal e interesseira, pedindo divulgação para determinada pessoa, obra ou espetáculo, sugestões de pauta, sempre surgem cartas que procuram um diálogo pessoal com o cronista.
A maioria é de reclamação contra isso ou aquilo, e, vez por outra, a reclamação sobe de tom e baixa de nível. Já recebi cumprimentos por ter escrito "Toda Nudez Será Castigada" --obra que figura entre as melhores que não escrevi. Semana passada, chegou uma carta de Santa Catarina.
Disponho de uma secretária que faz a triagem da maior parte das cartas e as encaminha ao lixo ou à resposta formal e meramente educada. Mas sempre aparecem algumas que trazem um problema especial --e essas costumam chegar à mísera pessoa do escriba.
Eu estava desprevenido, ou melhor, desabituado a receber cartas assim. A leitora não faz referência a nenhuma crônica específica, a nenhum dos livros que por aí publiquei. O comentário dela é genérico, começa com um tipo de agradecimento que me arrepiou: "Você é o maior!"
Nunca pensei nisso. Nem em meus momentos mais exaltados, chego a esse delírio. A leitora ainda comenta a insistência com que escrevo: "O senhor escreve como quem vive, sei que não vive para escrever, pelo contrário, escreve para viver".
Cretinice à parte, não faz exatamente o meu gênero. Contudo sinto-me obrigado a confessar o nó que tudo isso me deu aqui dentro. O primeiro impulso foi acreditar: "Custou, mas pelo menos surgiu alguém que reconhece o meu valor".
Cheiro a carta com vigor. Nenhum vestígio nem de incenso nem de enxofre. Deus e o diabo não querem nada comigo. Menos o José Simão, para quem a carta foi dirigida.