Editoriais
30 anos sem integração
Seria difícil, mesmo para um escritor associado às correntes do realismo mágico, imaginar um enredo tão fantasioso como o que acompanha, há quase três décadas completas, a construção da ainda incompleta ferrovia Norte-Sul.
Projetada para escoar a produção agrícola do cerrado brasileiro, interligando Açailândia, no Maranhão, a Estrela d'Oeste, no noroeste paulista, a obra de mais de 2.200 km converteu-se em símbolo de corrupção, incompetência e desfaçatez do governo federal.
A mácula do escândalo surgiu logo na fase de licitação, em 1987. Com reportagem assinada por Janio de Freitas, esta Folha revelou que, antes da abertura dos envelopes com as propostas concorrentes, já eram conhecidas as empresas vencedoras --muitas das quais, vale o registro, agora participam de acertos envolvendo a Petrobras.
Irregularidades semelhantes foram detectadas em 2012. A Polícia Federal identificou indícios de conluio entre as empreiteiras e sobrepreço de mais de R$ 100 milhões nos trilhos que atravessam Goiás. Em ambos os casos, a Valec, estatal ligada ao Ministério dos Transportes, esteve à frente das disputas.
Como se o transcurso de 27 anos sem a finalização das obras e a reedição das mesmas suspeitas tanto tempo depois não fossem suficientemente absurdos, a presidente Dilma Rousseff (PT) e o ex-presidente Lula (PT) resolveram reforçar o tom surrealista da narrativa.
Em 2010, Lula inaugurou a parte da Norte-Sul que conecta Palmas (TO) a Anápolis (GO), sem que o trecho estivesse pronto. Quatro anos depois, Dilma repetiu o gesto.
Ocorre que esses 855 km de trilhos, com custos superando R$ 3 bilhões, estão sem uso até hoje. A crer nas novas previsões, funcionarão ao final deste mês.
O cronograma, entretanto, talvez seja novamente descumprido. A Valec afirma que não existem mais restrições físicas à passagem dos trens; falta apenas contratar uma empresa para cuidar da manutenção dos trilhos. Uma concorrência com esse propósito havia sido programada para novembro passado, mas foi adiada.
Por enquanto, menos de 750 km da Norte-Sul estão de fato em operação. Sua integração com as demais ferrovias do país depende do trecho de Anápolis e, mais importante, de Estrela d'Oeste --o qual ficará pronto, na melhor das hipóteses, em dezembro deste ano.
Nesse ínterim, o frete nacional continuará custando até quatro vezes mais que o de países como Argentina e EUA, concorrentes no mercado de grãos. É o custo Brasil, sempre surreal, a pleno vapor.