Ruy Castro
Mais espertos do que nós
RIO DE JANEIRO - Já não se sabe se foi George Orwell quem adivinhou tudo ou se é a tecnologia que está botando em prática os horrores que ele anteviu. Em seu romance "1984", Orwell previu que a privacidade do cidadão desapareceria. Dia e noite, as pessoas seriam vigiadas por telas de televisão impossíveis de desligar -- as "teletelas"-- e teriam seu pensamento e ação controlados pelo Grande Irmão.
Pois, com a Smart TV, já estamos quase lá. Ela é capaz de escutar o que você disser ao alcance do aparelho, e estocar essa indiscrição, não se sabe para quem ou para quê. Por enquanto, só o escutará se você tiver acionado o comando de voz que lhe permite "falar" e ditar instruções ao aparelho sem o controle remoto. Mas distraia-se, deixe o tal comando ligado sem querer e sua vida pessoal irá para o brejo.
O moderno Grande Irmão não quer saber se você pensa assim ou assado politicamente, exceto se isso se refletir no seu grau de consumo. O que interessa é o seu nível escolar, quanto ganha, onde mora, com quem mora, o que gosta de comprar --música, jogos, roupas, bugigangas, pornografia, drogas, o que for-- e quanto pode ou tem de gastar para ficar feliz. Sabedor disso, ele partirá para fazê-lo gastar mais --porque, na (correta) visão dele, é para isso que você existe.
Para foragidos do Pleistoceno, como eu, a ideia de que um reles eletrodoméstico nos dê ordens é intolerável. Mas não há mais eletrodomésticos reles. Ficaram mais smarts -- espertos-- do que nós. Não demora e serão eles que, para nosso prazer ou alívio, aprenderão a nos desligar.
Em 1963, o cronista Antonio Maria se desesperava quando Danuza Leão, sua mulher, andava de camisola pela sala com a TV ligada. Dizia que o homem do "Repórter Esso" ficava de olho nela. Os amigos riam do ciúme louco de Maria. Mas ele podia estar certo.