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Bê-á-bá da laicidade
O aluno que não encontrar um exemplar da Bíblia na escola para fazer pesquisa sobre história das religiões sairá com a certeza da precariedade da biblioteca. O mais famoso dos livros tem lugar merecido até em acervos mantidos por ateus.
Coisa muito diversa de reconhecer esse fato é obrigar por lei que toda biblioteca tenha um exemplar da obra. O caminho temerário foi trilhado pelos legisladores de ao menos cinco Estados brasileiros.
O primeiro a fazê-lo foi o Rio Grande do Norte. Em 2003, determinou que todas as bibliotecas públicas do Estado tivessem ao menos dez exemplares do livro. Em seguida tomaram tal rumo Mato Grosso do Sul (2004), Amazonas (2010) e Rio de Janeiro (2011), que se contentaram com uma cópia.
Rondônia, em 2008, havia optado por uma via paralela, mas não menos atentatória contra a laicidade do Estado: oficializou a Bíblia como livro-base para fundamentar princípios, usos e costumes de comunidades, igrejas e grupos.
Pode parecer questão menor, fruto inócuo do lobby de bancadas religiosas, mas não é. Como bem assinalou o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, em cinco ações diretas de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, desrespeita-se o essencial artigo 19 da Constituição.
Seu inciso I reza que é vedado ao poder público, em qualquer nível de governo, "estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança".
É da natureza sectária de grupos religiosos acreditar-se portadores da verdade universal. Essa semente de intolerância pode desabrochar em tentativa de impor seus valores e dogmas, por meio da legislação, ao conjunto da população. Com sabedoria, o constituinte de 1988 interpôs a proibição absoluta de envolver o Estado no proselitismo.
Didático e categórico, Janot foi direto ao ponto: "O princípio da laicidade lhe impede de fazer, por atos administrativos, legislativos ou judiciais, juízos sobre o grau de correção e verdade de uma crença, ou de conceder tratamentos privilegiados de uma religiosidade em detrimento de outras".
É ótimo ter um livro como a Bíblia na estante das escolas. A demasia está em obrigar todos os contribuintes a financiar sua difusão.