EDITORIAIS
Exagero flagrante
Havia certas ressalvas, e mesmo algumas críticas mais incisivas, à implantação das audiências de custódia em São Paulo, procedimento que assegura a quem for preso em flagrante o direito de ser levado à presença de um juiz num prazo máximo de 24 horas.
Embora seja prescrita pelo Pacto de San José, tratado ratificado pelo Brasil em 1992, a ferramenta até hoje não foi adotada como regra pela Justiça brasileira. Nos casos de prisão em flagrante, o magistrado costuma se informar sobre as circunstâncias da detenção apenas pela papelada que recebe.
A ideia do novo modelo é não só melhorar a análise da legalidade e da necessidade da detenção, mas também inibir práticas como coação e tortura, infelizmente ainda presentes em algumas delegacias.
Apesar de tais propósitos parecerem irretorquíveis, associações de promotores, de delegados e de juízes se dispuseram a contestar a medida. Argumentaram, por exemplo, que, dadas as grandes dificuldades logísticas, não haveria estrutura suficiente para a nova rotina. Houve, ademais, quem questionasse a efetividade do instrumento.
As duas objeções, contudo, não resistiram muito tempo. A primeira porque não ataca o princípio das audiências de custódia; se elas se revelarem importantes, cabe ao poder público garantir os meios operacionais necessários. A segunda porque, de acordo com balanço apresentado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), o novo modelo teve impacto evidente.
De 24 de fevereiro a 18 de março, contaram-se 394 presos em flagrante nas regiões sul e central da capital paulista, onde a ferramenta começou a ser testada. Após as audiências, 222 deles continuaram detidos, ao passo que 137 obtiveram liberdade provisória e 30 mereceram encaminhamento assistencial (os juízes entenderam não haver flagrante em cinco situações).
O desembargador José Renato Nalini, presidente do TJ-SP, é assertivo ao sustentar que, no sistema antigo, "essas 167 pessoas ficariam com certeza presas".
Se essa proporção (42% de encarceramentos desnecessários) se repetir em todo o território paulista, onde em 2014 registraram-se em média 292 flagrantes por dia, chega-se a pelo menos 44 mil pessoas por ano postas atrás das grades sem motivo para tanto. Isso num Estado cujo sistema carcerário convive com deficit de 90 mil vagas.
Obstáculos burocráticos decerto são menos relevantes do que o imperativo de dar a todos os cidadãos o tratamento apropriado, nos termos da lei --e não só em São Paulo, mas no país inteiro.