Ruy Castro
Goleada redentora
RIO DE JANEIRO - Até quarta-feira passada, ao escrever "ocupação: escritor" na ficha dos hotéis e ser perguntado sobre minha especialidade, a vontade era a de dizer: "Biógrafo. Se e quando deixam". Se quisesse biografar, digamos, Manuel Bandeira, Dick Farney, Cecília Meireles, Di Cavalcanti, Raul Seixas ou Guimarães Rosa, eu teria de me humilhar diante de seus herdeiros ou representantes para conseguir as autorizações. E, terminado o trabalho, submeter-lhes os originais para "apreciação" --que lhes dava o privilégio de cortar o que não quisessem ver publicado.
Se já era assim quando se tratava de simples cantores, pintores, poetas e escritores --que, em princípio, podem ter cometido apenas pecadilhos pessoais--, imagine biografar o general Médici, sinônimo da tortura na ditadura, ou alguns dos empresários que financiaram o DOI-Codi e se beneficiaram de favores concedidos por ministros do período, entre os quais vários ainda vivos. Era um capítulo crucial da história do Brasil que nos estava sendo sonegado.
Os 9 x 0 do STF vão além da liberação das biografias, na opinião do meu amigo e antigo colega do "Correio da Manhã", o analista político Pedro do Coutto. "Essa goleada representa o sepultamento definitivo da ditadura militar, 30 anos depois que ela foi dada como morta", diz ele.
Coutto tem razão. Neste momento, talvez mais importante do que biografar cantores de rádio --mesmo aqueles que mancharam suas biografias arvorando-se de censores há dois anos e, agora, cinicamente, tentam tirar o corpo fora-- seria mergulhar a fundo na história dos protagonistas da vida política brasileira nos últimos 50 anos. Inclusive os de hoje.
Os 9 x 0 acabam também com a indústria do herdeiro, que dava a parasitas com algum parentesco ilustre o direito de extorquir dinheiro dos biógrafos e dos produtores culturais.