Reivindicar os nossos deveres
Ratificada há quase 70 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos está longe de ser uma realidade para muitos cidadãos, infelizmente
"Foi-nos proposta uma Declaração Universal de Direitos Humanos, e com isso julgámos ter tudo, sem repararmos que nenhuns direitos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem, o primeiro dos quais será exigir que esses direitos sejam não só reconhecidos, mas também respeitados e satisfeitos", disse José Saramago no banquete de recepção do Prêmio Nobel de Literatura, em 10 de dezembro de 1998, em Estocolmo.
Era para ser apenas um brinde, mas o escritor português preferiu usar a palavra para lançar um desafio no dia em que se completavam os 50 anos da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos: e se começássemos a exigir que se respeitem, também, os deveres humanos?
José Saramago morreu em 18 de junho de 2010, aos 87 anos, combativo e lúcido como poucos. Até os últimos dias de vida escreveu. Esteve às voltas com a história de um empregado de uma fábrica de armas, um sujeito pacato e apagado, que nunca disparou uma arma, que vive entre papéis e carimbos, e que de repente vê-se diante da possibilidade (ou seria do dever?) de insurgir-se, de levantar-se, de dizer não.
Em "Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas", livro publicado postumamente, o autor que já havia feito com que, a partir de uma cegueira branca, enxergássemos e reparássemos no próximo, desta vez assalta a consciência dos leitores com a possibilidade de construção de um futuro distinto edificado sobre um não.
"Chega sempre um momento na nossa vida em que é necessário dizer não. O não é a única coisa efectivamente transformadora, que nega o status quo. Aquilo que é tende sempre a instalar-se, a beneficiar injustamente de um estatuto de autoridade. É o momento em que é necessário dizer não", declarou em entrevista a esta Folha em 1991.
Na Suécia, na mesma ocasião em que recebeu o Prêmio Nobel, Saramago pediu aos cidadãos comuns, grupo no qual se incluiu, que tomassem a palavra e a iniciativa. "Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor."
Mais de 15 anos depois desse chamamento, a Fundação José Saramago, em parceria com a UNAM (Universidade Autónoma do México) e com a World Future Society, entidade que reúne especialistas em prospectar as tendências da economia e da sociedade para o futuro, convoca um encontro na capital mexicana com o intuito de dar corpo à ideia lançada pelo autor de "Ensaio sobre a Cegueira".
Entre 24 e 25 de junho meia centena de académicos, intelectuais e pensadores de várias nacionalidades estarão reunidos na Cidade do México com o objetivo de criar uma proposta de Carta dos Deveres Humanos a ser encaminhada à ONU (Organização das Nações Unidas).
Ratificada há quase 70 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos está longe de ser uma realidade para muitos habitantes deste nosso planeta, infelizmente. Dizia José Saramago que quem efetivamente governa o mundo são as empresas "multinacionais e pluricontinentais", e o fazem a partir de um poder tirânico que reduziu "a uma casca sem conteúdo" o que ainda havia do ideal de democracia.
Mas se é certo que os governos e as grandes corporações não respeitam os direitos básicos dos cidadãos, nós também não estamos a cumprir com o dever de cidadão que somos, acrescentou.
Com esperança de que a elaboração de um documento que estabeleça obrigações significará, ao mesmo tempo, o fortalecimento da proteção dos direitos humanos é que estaremos reunidos com a sociedade civil na Cidade do México nos próximos dias.
Dizer não, mais do que um direito, é nos dias de hoje também um dever. Sobre isso escreveu José Saramago. Sobre isso falaremos na capital mexicana, deixando neste espaço também um apelo ao debate e à discussão de propostas.