Jerson Kelman
A conta de água do senhor Y
Todos são beneficiados pela coleta e tratamento de esgoto. Por isso a conexão à rede e o pagamento pelo serviço deveriam ser compulsórios
Quando compartilhamos uma refeição com amigos num restaurante e um dos participantes sai mais cedo sem pagar, sabemos o que acontece: os que ficam pagam mais.
Assim também é quando algum grupo de usuários de serviço público --água, metrô ou eletricidade-- consegue uma decisão judicial que o isente de pagar total ou parcialmente a parte que lhes cabe no rateio do custo. Quanto maior o número de beneficiados pela isenção, maior será o peso sobre os ombros dos que não foram contemplados.
Vejamos o que ocorre quando um cliente de uma companhia de saneamento --vamos chamá-lo de senhor Y-- tenta diminuir o valor de sua conta sob o pretexto de que a água que escoa pelo ralo de sua residência ou de seu estabelecimento não é conduzida para uma estação de tratamento de esgotos.
Ou pior, quando se recusa a fazer a conexão de sua residência na rede coletora de esgotos, como se isso fosse um assunto de interesse individual. Na realidade, trata-se de assunto de interesse coletivo, embora o senhor Y provavelmente não perceba isso e se julgue cheio de razão: "Afinal, por que deveria pagar por um serviço que não usa?".
Há um equívoco nessa maneira de pensar. Em condições de normalidade hídrica, o senhor Y pode decidir livremente a duração de seu banho. Dependendo da opção, ele pagará mais ou menos na conta de água. Se a água servida que escorre pelo ralo não for coletada e conduzida para uma estação de tratamento de esgoto, porém, toda a sociedade conviverá com a poluição.
Ou seja, o beneficiário do serviço de coleta e tratamento de esgoto não é o indivíduo, e sim toda a coletividade. Portanto a conexão à rede e o pagamento pelo serviço de saneamento deveriam ser compulsórios, independentemente do trajeto seguido pela água servida. Se assim fosse, o senhor Y faria a sua parte no esforço coletivo de melhorar a salubridade e a qualidade do ambiente, em benefício de todos.
O cálculo tarifário é feito para garantir a sustentabilidade do serviço realmente prestado, e não do serviço que seria ideal.
Embora em São Paulo praticamente toda a população tenha acesso à água potável, e no passado recente tenha ocorrido uma aceleração para universalização da coleta e tratamento de esgoto --o que coloca o Estado em posição de liderança nacional--, ainda assim serão necessários alguns anos para que consigamos atingir a condição ideal.
É óbvio que quanto mais próximo um país estiver da universalização, maiores serão os investimentos e os custos operacionais. É por isso que a tarifa média de água na Europa é, em geral, bem mais elevada do que no Brasil.
Nos países desenvolvidos houve uma lenta evolução da cobertura e da qualidade do serviço de saneamento, compatível com o avanço da renda média da população. Ainda no século 19 iniciou-se o fornecimento de água potável nos principais centros urbanos.
A abundância de água, outrora desconhecida, criou um novo problema: aumento vertiginoso da quantidade de esgoto, cuja solução sistemática ocorreu na primeira metade do século 20, com a instalação dos sistemas de coleta de esgoto.
A solução de um problema conhecido ensejou, porém, o surgimento de um novo problema, até então desconhecido. No caso, a poluição dos rios e do mar. O que levou a um novo avanço --as estações de tratamento de esgoto-- que mesmo nas grandes metrópoles dos EUA e da Europa só se materializaram na segunda metade do século 20.
Não podemos ter a ilusão que o Brasil conseguirá queimar etapas e atingir num estalo o que nos países desenvolvidos só foi alcançado depois de décadas de trabalho. Mas, certamente, seria possível caminhar mais celeremente se a Justiça negasse apoio aos senhores Y da vida.