Carlos A. C. Lemos
Comércio nos Jardins
O que sempre houve foi uma indiferença de todos, que viram sem reclamar seus novos vizinhos pintarem e bordarem à vontade
Na profícua gestão de Modesto Carvalhosa, o Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), em 1986, tombou os bairros dos Jardins enfatizando, sobretudo, o fato de a área livre verde ali ocupar 70% da área loteada.
Essa ocorrência louvada pelo relator do processo, o arquiteto José Pedro de Oliveira Costa, não ofuscou os méritos históricos ali compartilhados.
Sabemos que, por volta de 1910, tanto a prefeitura como o Estado resolveram transformar o desgastado centro, onde tudo acontecia, tendo Paris como modelo. No entanto, foi muito difícil imaginar alterações no sistema viário devido a entraves colocados por proprietários afetados por possíveis desapropriações.
Foi preciso que a prefeitura contratasse o urbanista francês Joseph-Antoine Bouvard para conciliar ânimos e equacionar soluções. Ele, de sobra, projetou dois parques, o do Anhangabaú e o Dom Pedro 2º.
Bouvard era profissional capacitado e bastante esperto para vislumbrar o potencial latente na cidade rica de grandes negócios imobiliários baseados em vendas a prazo. Tal especulação dirigida à classe média certamente teria sucesso.
Assim, ele cooptou capitalistas vários ensinando o caminho das pedras e aliou-se a empresários ingleses que trouxeram para a nossa capital a famosa Companhia City. Com eles, vieram técnicos capitaneados pelo urbanista Barry Parker, o introdutor em São Paulo de ruas sinuosas, a novidade explicitada nas "cidades jardins" britânicas.
O Condephaat tombou o verde, o que subentende os recuos das construções às divisas e ao alinhamento da rua, além da taxa de ocupação de um terço da área do lote.
Tombou, inclusive, algumas construções de significado histórico, residências projetadas pela Cia. City como chamariz de novos moradores. As demais residências, vistas coletivamente, ficaram liberadas à demolição devido ao seu desapreço arquitetônico.
Durante os anos 60, devido à atração da avenida Faria Lima e ao crescente número de automóveis na cidade, várias ruas dos Jardins América e Europa tornaram-se corredores de tráfego intenso, fato que hoje inferniza os moradores afugentando-os, para serem substituídos gradativamente por empresários e profissionais liberais.
Escritórios ali instalados, na maioria dos casos, exigem áreas construídas maiores que aquela taxa máxima de ocupação afrontando os pressupostos do tombamento, que, inclusive, não tolera a diminuição da área permeável, mantenedora do lençol freático.
Existem casos de os novos proprietários aprovarem nas repartições públicas um projeto e executarem outro provido de subsolo muito maior que a projeção das construções. Todos devem estar funcionando com o "habite-se" da prefeitura e a aprovação do Condephaat, que se omite porque, ao que parece, nunca fiscalizou obra alguma.
Há de se obstar tamanha licenciosidade esclarecendo, contudo, que o tombamento daquele órgão da preservação do patrimônio não impede escritórios, zela apenas pela área permeável original. O uso dos imóveis é regulamentado pela prefeitura por meio de seu Plano Diretor e pela Lei de Zoneamento.
Agora, moradias nos Jardins ostentam faixas clamando pela exclusividade residencial sabendo que a satisfação desse desejo não vai minorar a inconveniência do trânsito local rumo à Faria Lima e adjacências. Talvez estejam reclamando da flagrante ofensa à taxa de ocupação e do roubo de áreas permeáveis.
O que sempre houve, no entanto, foi uma indiferença de todos, que viram sem reclamar seus novos vizinhos pintarem e bordarem à vontade. Existe o recurso da denúncia anônima aos medrosos condoídos, eles que avisem o Condephaat, que tem o poder de embargar obras diferentes daquelas ali aprovadas.
Na verdade, todos os indiferentes e infratores se irmanam, o desamor à nossa memória é geral.