PF se vale de anônimos para acusar índios
Inquérito sobre a morte de três pessoas em Humaitá (AM) em 2013 não identifica testemunhas; cinco estão presos
Relatório pericial pedido pela Procuradoria ressalta precariedade de dados passados sob o anonimato
O inquérito tocado pela Polícia Federal para investigar a chacina de três moradores de Humaitá (AM) revela que testemunhas anônimas são as principais peças de acusação contra os cinco índios tenharim presos desde fevereiro sob suspeita do crime.
A chacina completou um ano na terça-feira (16). Revoltados com o crime, no Natal passado moradores queimaram prédios e veículos da Funai e o posto de pedágio dos índios nas entradas da Terra Indígena Tenharim.
Segundo a investigação, sigilosa, a PF usou depoimentos de testemunhas identificadas apenas por números para apontar o suposto papel de cada um dos índios acusados. O Ministério Público Federal endossou a estratégia da PF e denunciou os índios, em abril, com base em sete depoimentos anônimos.
O Cimi (Conselho Indigenista Missionário), que presta apoio jurídico aos índios, encontra dificuldades para avaliar os depoimentos, já que a ausência das identidades não permite descartar outras motivações, como disputas internas na aldeia ou ligação com fazendeiros.
Em outro ponto nebuloso do inquérito, a PF não apresentou resposta a uma informação de familiares de um dos mortos. Em depoimento à PF, o irmão do professor de escola pública Stef Pinheiro de Souza, 43, disse que a conta da vítima no Facebook sinalizou estar ativa mesmo cinco dias após o crime.
Segundo o relatório final, a história começou em 3 de dezembro de 2013, quando o cacique Ivan Tenharim morreu, um dia depois de sofrer um suposto acidente de trânsito quando trafegava de moto pela Transamazônica. Nunca foi identificado o veículo que o teria atropelado.
Em 16 de dezembro, desapareceram três pessoas que foram vistas atravessando a terra indígena em um Gol --além de Stef, o comerciante Luciano da Conceição Ferreira Freire, 30, e o técnico da Eletrobrás Aldeney Ribeiro Salvador, 40. Dois dias depois, cinco PMs disseram ter visto índios empurrando um Gol para dentro da mata.
Em mais um ponto questionável da apuração, a PF não explica o que os PMs faziam naquele local e naquele dia, que era a folga da equipe, e por que demoraram dois dias para fazer o alerta.
Após muitos protestos e a depredação da Funai, os corpos dos desaparecidos foram encontrados em fevereiro, com marcas de tiros, em uma cova rasa na terra indígena.
A PF prendeu cinco indígenas, dos quais dois são filhos do cacique --Gilvan, 20, e Gilson, 25-- e um é sobrinho, Valdinar, 30. Também foi preso Domiceno Tenharim, 34, cacique da aldeia Taboca.
Os índios, que negam a autoria do crime, estão desde fevereiro no Centro de Ressocialização Vale do Guaporé, em Porto Velho (RO).
Segundo a PF, a chacina ocorreu por vingança. Embora existam outros indícios da participação de indígenas no crime, o inquérito se vale dos anônimos para dizer o que fez cada um dos índios presos.
A "testemunha nº 4", por exemplo, disse que o crime ocorreu depois que "um bruxo macumbeiro do distrito de Auxiliadora" recebeu R$ 2.500 para apontar o carro que teria matado o cacique. O "bruxo" não foi localizado nem ouvido em depoimento.
Segundo a PF, essa falsa informação levou os índios a pararem o carro errado.
Em relatório pericial antropológico feito a pedido do Ministério Público Federal, dois professores e uma pesquisadora ressaltaram a precariedade de informações passadas sob anonimato.
Segundo o relatório, os depoimentos, "sobretudo os sete que correspondem a casos de identidade não revelada, aludem a agentes sociais e situações fictícias".
O relatório também destacou que as fontes anônimas reconhecem não ter presenciado o momento do crime.
"Um dos pontos a destacar nos depoimentos é a ausência de testemunha ocular que tenha presenciado o assassinato. Os que apontaram para tal fato foi porque ouviram falar", diz o relatório.