Ronaldo Lemos
O avesso das cidades criativas
Para cada 'criativo' na Califórnia, há uma indústria em outro lugar que fabrica o produto a custo bem baixo
Nos últimos anos ganhou força no terreno do urbanismo a ideia da cidade criativa. Ela parte da premissa de que é possível para grandes cidades globais viverem a partir de profissões criativas: design, programação, audiovisual, arquitetura e assim por diante. É um conceito quase utópico de que grandes aglomerados humanos poderiam tirar seu sustento diretamente do espírito criativo dos seus habitantes.
Um dos expoentes mais conhecidos dessa ideia é o urbanista americano Richard Florida. Ele chegou a criar um "índice boêmio" para as cidades. Na sua visão, quanto mais boêmia a cidade, mais ela atrai pessoas criativas e, com isso, assegura um ciclo virtuoso de expansão econômica. Na mesma linha, Florida criou também o "índice gay", que correlaciona ambiente urbano aberto e diverso ao crescimento econômico. Londres, Nova York ou San Francisco seriam exemplos. Por sua abertura, tolerância e diversidade, esses locais atuam como ímãs para a classe criativa global.
Essas ideias são importantes e servem como boa bússola para se pensar a vida na cidade em qualquer lugar do mundo. No entanto, há aspectos menos discutidos.
Um dos elementos para a existência de cidades criativas é a separação entre os centros de comando, design e controle dos lugares onde acontece efetivamente a manufatura. Em outras palavras, as cidades criativas são o lado da moeda onde fica a parte inventiva da divisão do trabalho. Mas, para isso acontecer, em algum outro lugar alguém precisa colocar a mão na massa.
Tomem-se os produtos da Apple. Na embalagem consta que são "designed by Apple in California" (desenhados pela Apple na Califórnia). Logo a seguir há uma curiosa frase: "Assembled in China" (montado na China). Note-se que não se usa o famoso "made in China". E nem se diz quem é responsável pela montagem. Em geral, de cada US$ 100 de um produto da Apple, US$ 70 ficam nos EUA pelo design (remunerando as "cidades criativas"), 29% vão para os fabricantes de componentes espalhados pelo mundo e 1% fica com as montadoras chinesas.
Em síntese, para cada "criativo" na Califórnia, há em algum lugar do mundo uma planta industrial otimizada para operar com o menor custo possível, transformando ideias em produto industrial de larga escala. Goste-se ou não, esse desacoplamento entre criação e produção impulsionou grandes inovações dos últimos anos. Por meio desse arranjo, a Apple tornou-se a empresa mais valiosa do planeta hoje.
O Brasil tomou caminho diferente. Não embarcamos na possibilidade de aproveitar as plantas industriais chinesas para impulsionar indústrias criativas locais. E agora talvez seja tarde demais. Não só a China está se tornando cada vez mais criativa: os EUA querem trazer de volta a manufatura. Isso está mudando de novo a cara da indústria global. A pergunta que fica é: o que o Brasil vai fazer fazer diante disso?
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