J. P. Cuenca
A cidade mais feia do mundo
Não pegar táxis, negar caronas e transporte público, fazer tudo a pé; olhar para São Paulo
Na semana da minha chegada a São Paulo, ganhei a missão de guiar uma turista francesa em sua primeira experiência paulistana. Como muitos, ela veio fazer seu pré-Carnaval aqui antes de pular no Rio.
Para esse tipo de estrangeiro, São Paulo é uma escala fora do tom antes da experiência realmente brasileira que esperam ter em cartões-postais como Salvador, Recife ou Rio. Na alta temporada da crise hídrica, talvez uma parada ainda mais exótica do que já é --exótica, digo aqui, por não ser uma cidade suficientemente exótica e tropical num país supostamente exótico e tropical.
Não consultei o guia. A hora é de chafurdar no hedonismo de guerra e bailar a catástrofe em blocos de inspiração soviética ou cigana, sem nenhum clóvis ou pierrô, para terminar no Acadêmicos do Baixo Augusta, uma centopeia de gente se esticando da rua Antônia de Queirós até a praça Roosevelt, que é um bloco e também um protesto contra a ocupação do parque Augusta pela força da cimentocracia.
Nos intervalos, bebemos em bares anônimos do centro sob o som de maquininhas de juke box, fomos à 25 de Março comprar uma peruca de Cleópatra (para mim), vimos performances numa festa conceitual sediada num puteiro com espelhos suados na Bento Freitas, visitamos a fauna do Mandíbula na Galeria Metrópole, tentamos zerar os restaurantes peruanos da avenida Rio Branco. Em todo o fim de semana: não pegar táxis, negar caronas e transporte público, fazer tudo a pé. Olhar para cima: as belas e opressivas fachadas dos prédios da avenida São Luís, os arranha-céus "gothamescos" do Anhangabaú, os postes franceses iluminando a nostalgia suja do Arouche.
E também olhar para baixo, nas ruas, desafiando o nosso familiar solipsismo brasileiro, dando atenção às calçadas, aos homens e às mulheres dormindo cobertos pelo nosso lixo, às crianças chapadas de cola infiltradas no bloco de Carnaval --quando infiltrados estamos nós no centrão, a rua é deles-- e o moleque insistindo por um adereço inútil e iluminado que você não vai dar para minutos depois se arrepender. São Paulo, você descobre, é sobre estar profundamente acordado.
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Um dos grandes prazeres em viajar com alguém é compartilhar o espanto sobre o desconhecido, mas a francesa não parecia espantada como eu. Ou não do meu jeito. Quando olhou a vista do meu apartamento, disse: "Acho que essa é a cidade mais feia do mundo". Quando ouviu falar da falta d'água que paira como um espectro sombrio sobre as nossas cabeças, disse: "E você largou o mar para isso?".
Na hora eu nada respondi, mas o mar ou a floresta sempre me pareceram paisagens opressivas para se ter na janela de casa. E, sobre a falta d'água, é exatamente o que fará esta ser a cidade mais interessante do mundo em 2015.
São Paulo não está apenas na vanguarda de um problema que em breve atingirá o resto do Brasil e do planeta, mas será laboratório do seu impacto social. Se a ideia de escassez está associada ao conflito entre os homens, ela também é motor do trabalho, do comércio entre nações e, contraditoriamente, da necessidade de paz. Digressiono pelo seguinte: o racionamento fará São Paulo mais unida e solidária do que nunca. Talvez seja o que historicamente a una, pela primeira vez. E pense nas festas tribais, nuas, purpurinadas e desbundadas que ocuparão a cidade à beira da queda.
O bloco Rufos e Bufos cantou no sábado passado "A arca de Noé virou/Bebam vinho que a água acabou". É isso: bebamos. Tudo acaba. Para depois começar de novo.