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Crítica: Livro descontrói alguns mitos, mas reafirma outros
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DENISE ROLLEMBERG
ESPECIAL PARA A FOLHA
Para o pesquisador do tempo presente, seja ele historiador ou jornalista, o desafio de escrever uma biografia de um personagem como Carlos Marighella é enorme.
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As razões são muitas. A principal envolve as confusões que embaralham história e memória, como diria o historiador Henry Rousso. Vencidas as ditaduras e restabelecida a democracia, a tendência da sociedade é lembrar o passado recente buscando, por um lado, afastar-se de qualquer relação com o regime anterior; por outro, glorificar aqueles que lutaram contra ele.
Nesse percurso, as contradições e as ambivalências próprias a indivíduos e sociedade desaparecem e as versões mitificadas prosperam, apaziguando consciências, idealizando aqueles que não se submeteram.
Nos dois casos, a memória construída pouco tem a ver com a história.
Mário Magalhães enfrentou o desafio. As mais de 700 páginas do livro são resultado de uma pesquisa de notável fôlego. Entre história e memória, desconstruiu alguns mitos, reafirmou outros.
Um avanço considerável quanto à tendência da maior parte dos estudos acerca da luta armada e de seus revolucionários refere-se à natureza do combate: ao enfrentar a ditadura teriam lutado pela democracia ou visavam à reconstrução de outra ordem que não àquela existente desde o fim do Estado Novo?
A trajetória de Marighella é preciosa para compreendê-la. Ex-militante do PCB, rompeu com o partido e somou-se aos revolucionários.
Propunha, então, o enfrentamento armado, não somente para pôr fim à ditadura, mas, substantivamente, para construir uma outra ordem. Nela, a democracia era a ditadura do proletariado.
Essa é a ruptura essencial entre o PCB aliado do trabalhismo do pré-64 e as mais de 40 organizações revolucionárias, dentre as quais a ALN, criada e liderada por Marighella. Uma vida com um pé no comunismo das alianças institucionais e outro no comunismo revolucionário. Marighella foi um e outro.
O salto de Marighella foi também o de outros antigos militantes do PCB como Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho, Mário Alves, Joaquim Câmara Ferreira, entre outros.
Se a memória os tem recuperado como engajados na luta democrática, é preciso recuperá-los como militantes da ruptura, da revolução.
O enfrentamento que assumiram não foi para retomar a ordem interrompida com o golpe, mas para construir algo novo. Nas últimas décadas, a memória conseguiu fazer do revolucionário, antes de tudo, um democrata.
Um dos méritos do livro de Mário Magalhães é retomar a história, situar as opções dos agentes históricos em seu tempo e não em função de valores e referências do presente.
Nesse acerto do foco, não se está manchando o personagem histórico; ao contrário, trata-se de compreendê-lo, respeitá-lo, num esforço para se conhecer o nosso passado recente.
DENISE ROLLEMBERG é professora de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense e autora de "O Apoio de Cuba à Luta Armada no Brasil" (Mauad).
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