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Imparcialidade em documentários é ideia superada há muito tempo

Petra escolhe exibir imagens em que mostra sua opção pelo PT em mais de uma eleição

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Aprendi com João Moreira Salles que o bom documentário não é o que busca, de forma didática, ensinar alguma coisa. Para isso existe a Wikipédia.

João foi produtor executivo de “Uma Noite em 67”, o primeiro filme que codirigi com Ricardo Calil. 

“Uma Noite em 67” é sobre o Festival de Música Popular da TV Record realizado em 1967. 

Numa das versões preliminares, havia um trecho sobre a famosa cena em que Sérgio Ricardo quebrava o violão, intercalado com depoimentos que sublinhavam a gravidade do episódio. João nos convenceu a abandonar os depoimentos: a longa apresentação de Sérgio Ricardo sem interrupções fazia o espectador vivenciar a angústia de ser vaiado, interrompido, hostilizado, até culminar no rompante de quebrar o violão.

O bom documentário, aprendi ali, é o que provoca uma experiência. A ideia de que um documentário tem que ser imparcial, didático, informativo já foi superada há muito tempo. O gênero que mais evoluiu, que mais permite inovações, que mais valoriza a criatividade é o documentário. 

Hoje, a forma escolhida para contar uma história é tão (ou mais) importante que o tema.

“Valsa com Bashir” (Ari Folman, 2008) é um desenho animado. “Histórias que Contamos” (Sarah Polley, 2012) revela que embaralhou cenas ficcionais com as imagens de arquivo. “Santiago” (João Moreira Salles, 2007) parte de um filme inacabado para refletir sobre as possibilidades do gênero. 

Em muitos documentários de Werner Werzog, por exemplo, as reflexões do diretor, bastante pessoais, são importantes. É o caso de “O Homem Urso” (2005) e “Eis os Delírios do Mundo Conectado” (2016).

A obra de Eduardo Coutinho, o maior documentarista brasileiro, construiu uma nova linguagem ao subtrair tudo o que poderia ser supérfluo. 

Depois de “Santo Forte” (1999), seus filmes não têm trilha, imagens de cobertura, cenas de arquivos, roteiro, movimentos de câmera. O cinema de Coutinho é um processo de decantação que faz emergir apenas o essencial. Os silêncios, as pausas, os olhares, os corpos, tudo se comunica. 

As escolhas do que filmar, de como filmar e construir a narrativa, são essenciais num documentário. Tudo ajuda a construir um filme.

Em “Elena”, o primeiro filme de Petra Costa, a diretora conta uma história pessoal barra pesada. Mas a forma como faz isso torna o filme especial. Há momentos que evocam um sonho, o subconsciente, as memórias individuais que todos nós temos da infância e que, portanto, se tornam coletivas.

“Democracia em Vertigem” também se esmera na forma. É narrado em primeira pessoa e deixa claro, na largada, que vai misturar a trajetória pessoal da diretora com a da jovem democracia brasileira.

Petra escolhe exibir imagens em que mostra sua opção pelo PT em mais de uma eleição. Não põe em questão o fato de que está fazendo um filme parcial. Não busca ser didática, informativa —sabe que isso está ultrapassado. A diretora convida o espectador para a experiência de quem viu o sonho da esquerda se esfarelar.

A linguagem escolhida por Petra traz outras questões. 

Ao optar por esse recorte pessoal, intercalado com sua trajetória, ela sela um pacto com o espectador de que nenhuma informação sobre sua origem familiar seria negligenciada? A relação dos pais com os poderosos teria que ser exposta com mais firmeza? É possível esgotar todas essas informações pessoais, íntimas, sem perder o fio de um documentário sensível? 

Não existe uma verdade absoluta de que o documentário dê conta. Interessa mais que o debate continue, que nunca se esgote, e que as dúvidas continuem abastecendo a renovação dos documentários.
 

Democracia em Vertigem

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