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Sérgio Rodrigues

Livro notável prova que língua portuguesa nasceu do galego

Fernando Venâncio apresenta sólido ensaio histórico sobre as origens de nosso idioma

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Ilustração de Adams Carvalho para resenha sobre o livro “Assim Nasceu uma Língua”, na Ilustríssima

Ilustração de Adams Carvalho Folhapress

Sérgio Rodrigues

Colunista da Folha

[RESUMO] Chega ao Brasil o livro "Assim Nasceu uma Língua", robusto ensaio do professor português Fernando Venâncio. Fruto de pesquisa pioneira que detalha a origem de incontáveis palavras, a obra refuta visões puristas e nacionalistas ainda hoje propaladas, comprovando cientificamente que nosso idioma não nasceu com a formação do reino de Portugal, no século 12, mas sim cerca de seis séculos antes, derivado do galego, língua de comunidade do noroeste da Península Ibérica. Dotado de grande rigor e pesquisas exaustivas que traçam amplo painel histórico do português até os dias de hoje, o livro também se destaca pela verve e boa prosa que o tornam acessível ao leitor comum.

"Assim Nasceu uma Língua", longo ensaio histórico sobre as origens de nosso idioma que o linguista, escritor e professor português Fernando Venâncio lançou em 2019, está saindo finalmente no Brasil.

O atraso de cinco anos da edição brasileira de obra tão inovadora e relevante para as conversas sobre a língua que compartilhamos com os portugueses pode ser visto como sintomático da distância que aos poucos vai se alargando entre eles e nós.

Sobre esse fenômeno, que é estrutural, ainda que mascarado pela proximidade dos registros cultos escritos, o autor não tem dúvida. Afirma que o português está fadado a "dividir-se, ou multiplicar-se, em outros idiomas, tal como um dia aconteceu à língua dos romanos" (as variedades africanas estão incluídas no pacote).

Ilustração de Adams Carvalho para resenha sobre o livro “Assim Nasceu uma Língua”, na Ilustríssima
Ilustração de Adams Carvalho - Folhapress

Significativa ou não, a lentidão editorial parece pouco compreensível quando levamos em conta um fato singelo: o livro da vida de Venâncio, 79 anos, nascido na cidade alentejana de Mértola e doutorado na Universidade de Amesterdão (como se escreve no português europeu), fornece munição valiosa aos falantes brasileiros —infelizmente legião— que se sentem inferiorizados diante deste argumento brandido por portugueses xenófobos: "A língua não é de vocês, é nossa, pois a criamos". Não, não criaram. Quando nasceu, ela se chamava galego, idioma falado na região espanhola da Galiza.

Esse nascimento, garante Venâncio, não se deu no século 12, quando surgiu o reino de Portugal, mas cerca de seis séculos antes, na região que os romanos tinham batizado de Galécia (Gallaecia), correspondente às atuais porções norte de Portugal, acima do rio Douro, e noroeste da Espanha.

Preservada da invasão árabe que por séculos dominou a Península Ibérica, foi dela que, na chamada Reconquista, partiu a onda destinada a repovoar de linguagem as terras do sul, Lisboa obviamente incluída. Ali se falava àquela altura um moçárabe com poucos vestígios românicos.

Convém explicar bem. Que o galego e o português são idiomas muito semelhantes, parentes próximos, sempre se soube. Que o galego surgiu primeiro, também não era bem um segredo, por mais que gerações de estudiosos portugueses tenham tentado abafar o fato, tomados daquele constrangimento que, na boa imagem de Venâncio, famílias de novos ricos sentem diante de parentes pobres que chegam de surpresa para visitar.

O que "Assim Nasceu uma Língua" traz de novo ao debate é a solidez de um painel histórico montado com base na datação de palavras, incontáveis palavras, e nos padrões que desse modo podem ser discernidos em seus conjuntos.

Etimologia posta a serviço da história social. Isso permite provar cientificamente que o português é filho do galego e que todas as tentativas de obscurecer esse fato feitas ao longo de séculos são, para usar uma expressão do autor, "constructos ideológicos".

Tal operação ideológica nada mais é do que nossa velha conhecida —a história contada pelo vencedor. No caso, pelo país que em 1174 teve reconhecida sua independência como reino e que, menos de três séculos mais tarde, se lançou às conquistas ultramarinas que o tornariam uma potência imperial.

No papel de vencido, uma nação até hoje subjugada política e linguisticamente ao domínio espanhol. O vencedor não foi misericordioso, e houve ocasião de ser deselegante. Em 1793, um acadêmico português elogiou o padre Antônio Vieira por expurgar da linguagem "as antigas fezes do dialecto galiziano".

É bem conhecida a importância que os Estados-nação europeus deram, com graus variados de sucesso, à imposição de suas línguas a toda a população, como se idioma e nacionalidade fossem indivisíveis.

O galego se tornou assim um estorvo para o país vizinho: como conceber um idioma que, sendo já igual ao português, existisse antes de Portugal? Escreve Venâncio: "E é um facto: os portugueses continuam a imaginar a história anterior a eles como se o mundo tivesse vivido na expectativa de que um Portugal surgisse, como se o aparecimento de um Portugal viesse duma necessidade intrínseca à história mundial".

Séculos mais tarde, gramáticos lusos incomodados com esse desencaixe histórico tentariam resolver o problema criando o conceito do galego-português, língua arcaica da qual teriam brotado duas. O truque convence muita gente até hoje, mas "Assim Nasceu uma Língua" denuncia seu anacronismo —naquele período de formação, cujo início nebuloso as conjecturas de Venâncio situam nos anos 600, existia uma Galiza, mas não havia nem fumaça de Portugal no horizonte.

No entanto, a língua românica falada naquela região da península "isolada desde a Antiguidade" já começava a promover de modo estruturado e amplo a derrubada do "l" e do "n" latinos, marca inconfundível do nosso idioma enfileirador de vogais —que do latim "luna" fez "lua", por exemplo.

"Tudo é previsível, tudo é rigoroso", maravilha-se o autor ao falar desse processo. "Estamos, pois, perante uma autêntica norma‐padrão, um conjunto complexo, mas estabilizado, de regras sistematizadas, consistentes, de funcionamento predizível. E, assim, no próprio momento em que se inicia a sua escrita, a língua que Portugal herdou da Galiza apresenta‐se gramaticalmente consolidada, coerente, funcionando em pleno."

A trama, naturalmente, vai se adensar —e como— nos séculos seguintes. Os falantes de Lisboa criarão o "ão", que nenhuma outra língua tem, substituindo a "razom" galega pela "razão".

A chamada "desgaleguização" fará o português, em sua busca de respeitabilidade, se reaproximar das fontes latinas —na maior parte das vezes por intermédio do espanhol, língua que a elite do país teve como modelar entre os séculos 16 e 17, antes de cair no colo do francês. Isso faz com que as palavras "lua" e "lunar", por exemplo, convivam como se não houvesse discrepância entre elas.

Venâncio defende que, semelhanças à parte, português e galego não são mais a mesma língua —para irritação do movimento reintegracionista da Galiza, que busca no vizinho uma saída para o risco de diluição de seu idioma no espanhol.

Todas essas circunvoluções o livro acompanha por meio de palavras e suas histórias, tornando-se um repositório de curiosidades etimológicas. A matéria tem grande apelo popular, o que contribui para uma leitura saborosa.

A diferença é que a origem das palavras, que costuma ser apresentada fora de contexto, frequentemente de modo pouco rigoroso e por vezes até leviano, apoia-se aqui em pesquisas exaustivas e é posta a serviço de uma arquitetura histórica ampla. "O livro que se vai ler é, pois, fruto desse trabalho pioneiro", escreve o autor na página 59, quando a leitura já vai avançada. "Ninguém até hoje se abalançara a estes descaminhos."

Leitura saborosa não quer dizer leitura fácil. Venâncio é aquele tipo meio raro de acadêmico sério que adora conversar com o público leigo. Além de colaborar regularmente com a imprensa tradicional, não descarta sequer o Facebook, onde é possível acompanhar em bases quase diárias suas intervenções sobre questões linguísticas que mobilizam os não iniciados.

Seu estilo é ao mesmo tempo bem-humorado (na disposição de contar histórias divertidas e rir dos absurdos do mundo) e mal-humorado (na intolerância com os sabichões, numerosos em ambos os lados do Atlântico, que mais certezas sobre a língua apregoam quanto mais ignoram informações básicas sobre ela).

A verve, a boa prosa e o apreço pela comunicação tornam o livro acessível a não especialistas, mas o grande volume de informações exige um leitor que tenha alguma familiaridade com questões linguísticas, além de fôlego para nelas mergulhar fundo.

Não faltam anedotas e alfinetadas, como a que o autor desfere em José Saramago por ter afirmado, em congresso de 1989 na Galiza, que a língua portuguesa nascera em Portugal —"o sumo da indelicadeza".

Sobra um cascudo também para o brasileiro Nei Lopes por sua proposição fantasiosa de uma origem no quimbundo —a princípio repetida pelo dicionário Houaiss, que mais tarde se corrigiu— para a palavra "barafunda", já existente no espanhol em 1435. Tudo isso é pitoresco, mas vem de mistura com cerradas citações e longas listas de vocábulos.

Também uma questão de forma pode criar alguma dificuldade para o leitor. A não observância do Acordo Ortográfico, que Venâncio condena, é irrelevante nesse sentido, mas não se pode dizer o mesmo da manutenção do português europeu sem a concessão de uma única nota de rodapé.

Veja-se a seguinte frase: "Sendo impossível atentar na mole imensa que é um idioma, vamos privilegiar, nele, determinados sectores (...)". Quantos brasileiros saberão que "mole" é um substantivo que significa "massa, grande quantidade"? Estamos nos distanciando, pois é.

Por fim, vale registrar que não fazem sentido os rumores —meio abafados, mas audíveis— de que "Assim Nasceu uma Língua" refutaria categoricamente "Latim em Pó", best-seller lançado em 2022 pelo linguista e tradutor brasileiro Caetano Galindo.

A ideia parece se basear no fato de que, tendo nascido do galego, o português não teria direito a um título como aquele —sacada, aliás, de outro Caetano, o Veloso. Bobagem. Galindo escreve com todas as letras: "O português, então, não ‘vem do latim’ diretamente. Vem do galego, que —este sim— veio do latim. Mais um desvio de trajetória".

Pulverização é assim mesmo: o triturador de latim que foi a Europa da Idade Média tinha várias mós, e não é como se o galego fosse uma língua eslava, certo?

Trata-se de dois livros muito diferentes, com objetos e propostas inteiramente distintos. Se Venâncio fecha seu foco assumidamente no português europeu, Galindo reconhece estar preocupado com o português brasileiro, com suas influências indígenas e africanas. Quem puder deve ler os dois, comemorando uma safra de obras notáveis sobre nossa língua por enquanto única.


LEIA TRECHOS DO LIVRO

Também não se acharão, neste livro, pelo menos no discurso do autor, conceitos de maior ou menor consistência como lusofonia, galegofonia, iberismo, portugalidade, identidade, portugaliza. São constructos ideológicos, mais ou menos folclóricos, mais ou menos espertalhões. Tampouco se verão utilizados galego‐português (a seu tempo se lhe exporá a incongruência) ou português da Galiza, noção historicamente tão desapropriada como seria brasileiro de Portugal. São, todos eles, investimentos ideológicos, umas vezes ingénuos, outras demagógicos. Nada reflectem de concreto, menos ainda de aproveitável, em matéria linguística.

Em contrapartida, há‐de falar‐se, com naturalidade, em português brasileiro e português europeu, designações práticas, e sobretudo adequadas, mas que causam urticária a portugueses, galegos, e mesmo brasileiros, apóstolos da unidade da língua, conceito, ele também, retórico, adorado por sectores portugueses e brasileiros marcadamente reaccionários – o que ainda seria o menos –, mas sobretudo sem qualquer significado, ou conteúdo, linguístico, por nunca ter sido essa unidade preocupação concreta, nem patentemente competência, dos seus patrocinadores. A verdade (triste, ou entusiasmante) é que a variedade brasileira e a europeia se vêm, desde há séculos, afastando, e cada dia se vão afastando mais, num processo irreversível.

É esta concepção essencialista da história —surge um país, surge uma língua— a que prevalece em mentes portuguesas. A ocorrência quase simultânea dos primeiros testemunhos linguísticos e da emergência do Estado português – co‐ocorrência, insistamos, inteiramente fortuita – condicionou para sempre também a visão portuguesa da língua. Inserir‐se nela o galego só viria perturbar um belo sonho. Veja‐se este caso elucidativo.

Num artigo de 2014, Ivo Castro, falando do primeiro rei português, Afonso Henriques, morto em 1185, afirmava que a língua materna do monarca lhe permitia "conversar com os de Vigo, Compostela, ou mesmo Corunha, que compartilhavam de dialectos nascidos do mesmo latim,

transformados pelos mesmos processos". E acrescentava o professor: "Essas afinidades linguísticas mantêm‐se no terreno até aos dias de hoje, mas para as reconhecer é necessária alguma aplicação, porque vão contra a corrente da construção de um país em que Afonso Henriques e os seus descendentes se empenharam com sucesso".

Que diz o nosso linguista? Que galego e português tiveram origem no mesmo tipo de latim, que passaram pelos mesmos processos, que as afinidades se mantêm "no terreno" até hoje. Mas também —e aqui Ivo Castro, habitualmente frontal, serve‐se de eufemismos— que o admitir tal coisa vai "contra a corrente da construção de um país" próprio. Menos codificado, é a confissão de que, em Portugal, a simples admissão de afinidades linguísticas com a Galiza equivale, hoje ainda, a desafiar a concepção de país independente. Eis um facto estarrecedor: para um português, língua e independência são, e continuam a ser, conceitos indissociáveis. Pôr um em causa faz correrem perigo os dois.

Assim Nasceu uma Língua

  • Preço R$ 99,90 (304 páginas)
  • Autoria Fernando Venâncio
  • Editora Tinta da China Brasil
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