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02/09/2011 - 14h45

Dez anos mais tarde, ainda atormentados pelos demônios do 11/09

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ANEMONA HORTOCOLLIS
DO "NEW YORK TIMES", EM NOVA YORK (EUA)

No final de 2001, na segurança do consultório de seu terapeuta, Margaret Dessau gravou uma fita em que reviveu como foi olhar da janela de sua sala de estar depois de ouvir o estrondo de um avião sequestrado, a oito quadras de distância.

Ao sair correndo da banheira, ainda nua, ela viu pombos e papéis voando pelo ar.

"É bonito, de certo modo", ela recorda na gravação que fez e ouviu inúmeras vezes, como parte do tratamento. "Há esses pedaços prateados flutuando no ar."

Seu olhar topou com o buraco aberto na torre.

"As chamas ficam piores, e então começo a ver todas essas pessoas penduradas para fora. O sujeito com uma toalha branca na mão a está agitando", ela disse.

O homem salta. Crianças em uma escola próxima gritam.

"Como você está se sentindo?" ouvimos o terapeuta, David Bricker, perguntando a Dessau na fita. "Começo a chorar", ela responde.

O marido de Dessau grita para ela: "Pare de olhar, pare de olhar para isso". Mas, ela conta, "não consigo desgrudar meus olhos daquilo".

Uma medida do impacto psicológico do 11 de Setembro é a seguinte: pelo menos 10 mil bombeiros, policiais e civis expostos aos ataques terroristas contra o World Trade Center apresentam transtorno de estresse pós-traumático (TETP), e muitos ainda não se recuperaram dessa espécie de luto coletivo, segundo cifras compiladas pelos três programas de saúde criados pela cidade de Nova York ligados ao 11 de Setembro.

Em entrevistas dadas nos últimos meses, Dessau e outras pessoas revelaram um conjunto amplo, mas consistente de sintomas. Eles não conseguem dormir. Revivem o desastre em suas mentes ou em seus pesadelos. Apresentam dificuldades de concentração.

Sofrem de nervosismo e reagem exageradamente a alarmes ou ruídos altos. Sentem-se impotentes, desesperançados, culpados e isolados das pessoas próximas a eles. Evitam qualquer coisa que lhes lembre daquele dia terrível.

Milhões de dólares serão gastos tratando-os nos próximos anos, graças à Lei James Zadroga de Saúde e Compensação pelo 11 de Setembro, aprovada pelo Congresso em setembro e que destina US$ 4,3 bilhões a pagamentos e tratamento de pessoas com doenças relacionadas ao 11 de Setembro.

O financiamento federal de tratamentos para TEPT foi limitado a bombeiros; policiais; funcionários do instituto médico-legal da Prefeitura de Nova York que manusearam restos mortais; funcionários dos serviços de resgate, recuperação, limpeza e apoio no Ponto Zero, nas barcaças que transportaram destroços e no aterro sanitário de Staten Island onde o entulho das torres gêmeas foi enterrado; pessoas que trabalharam nos locais atacados no Pentágono e em Shanksville, Pensilvânia; e pessoas expostas à poeira do 11 de Setembro quando os edifícios ruíram ou que viviam, trabalhavam ou estudavam ao sul da rua Houston, em Manhattan, e nas partes do centro do Brooklyn para onde a poeira pode ter chegado.

Os familiares dos bombeiros de Nova York que morreram ganham cobertura dentro dos termos de um programa previamente existente de aconselhamento fornecido pelo Departamento de Bombeiros, mas os familiares de outras vítimas, não.

A deputada democrata de Nova York Carolyn B. Maloney, proponente principal da lei Zadroga na Câmara dos Deputados, disse que, como as famílias das vítimas tinham recebido cobertura dentro do fundo original de compensação do 11 de Setembro, que pagou em média US$ 2,1 milhões a cada família, o objetivo foi garantir atendimento a outros que tinham sofrido.

"Estamos focando o atendimento a pessoas que não morreram no 11 de Setembro, mas que estavam morrendo ou doentes em decorrência do 11 de Setembro", disse ela.

A lei ganhou o nome de um investigador da polícia nova-iorquina que participou dos trabalhos de resgate e mais tarde desenvolveu complicações respiratórias. A causa de sua morte, em 2006, virou uma fonte de discussões.

John Howard --que, como diretor do Instituto Nacional de Saúde e Segurança Ocupacional, é o responsável pelos programas do 11 de setembro-- disse em entrevista que está disposto a conceder às pessoas o benefício da dúvida quanto ao TEPT, mesmo que elas tenham outras fontes de estresse.

"A queda de 220 andares de material sobre uma das cidades de maior densidade demográfica do mundo é um evento excepcional", disse Howard. "Na saúde mental é preciso tratar a pessoa por inteiro, e não é possível realmente separar algumas dessas outras influências, como fatores de estresse pessoais, questões econômicas. As pessoas estão vivendo suas vidas."

Em função de dúvidas que ainda permanecem quanto aos limites do diagnóstico de TEPT, que começou a ser feito há apenas três décadas, pessoas com problemas mentais têm direito a assistência apenas para o tratamento, enquanto pessoas com problemas físicos, na maioria dos casos dificuldades respiratórias, têm direito a tratamento e também auxílio financeiro.

E o dinheiro disponível para tratar pacientes com transtorno de estresse pode diminuir se o governo concluir que existe ligação entre determinados cânceres e o 11 de Setembro, o que daria aos pacientes de câncer acesso ao mesmo fundo de dinheiro.

Médicos preveem um aumento no número de pacientes com TEPT no décimo aniversário do 11 de Setembro, como vem acontecendo a cada aniversário.

Charles Figley, ex-fuzileiro naval e professor de saúde mental em desastres na Escola de Trabalho Social da Universidade Tulane, propôs o conceito de TEPT em um livro de 1978 sobre veteranos da Guerra do Vietnã.

Ele disse que uma razão pela qual as pessoas têm tanta dificuldade em se desvencilharem do trauma é que a tessitura mais normal de seu cotidiano foi dilacerada.

O ponto de referência não é uma montanha distante no Afeganistão que a pessoa nunca mais verá na vida.
"São os lugares que você vê todos os dias, onde você pediu sua mulher em casamento, onde você recebeu a notícia de uma promoção, onde seus filhos pequenos brincavam", disse Figley. "Você entra em uma zona de combate e depois vai embora. Mas você não deixa sua casa. Você retorna a ela o tempo todo."

UM MAL ANTIGO, MAS QUE EVOLUI

A "Ilíada" descreveu guerreiros consumidos por sentimentos de culpa, raiva e tristeza. A Primeira Guerra Mundial teve o "choque das bombas", e a Segunda Guerra Mundial, a "fadiga de combate".

O TEPT foi identificado em sobreviventes de campos de concentração nazistas, incêndios e acidentes de trens. Mas foi apenas em 1980, após a Guerra do Vietnã, que o transtorno de estresse pós-traumático foi acrescentado à bíblia psiquiátrica --o "Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais".

O manual atual, conhecido como DSM-IV diz que o TEPT pode surgir em função de exposições em graus diversos a mortes ou ferimentos: envolvimento pessoal direto, testemunhar esses fatos, ou, quando dizem respeito a uma pessoa próxima, simplesmente tomar conhecimento deles.

Quase nenhum outro diagnóstico psiquiátrico já gerou tanta controvérsia, segundo Robert L. Spitzer, professor aposentado de psiquiatria da Universidade Columbia e especialista em classificações de transtornos mentais.

Ele e dois outros peritos escreveram em um artigo de um periódico profissional que o diagnóstico se tornou tão vago que estudantes universitários estressados e pessoas que assistem a filmes de horror podem enquadrar-se no perfil.

"É uma maneira de dizer que algo terrível me aconteceu e que eu fui atingido de alguma maneira, mas isso não significa necessariamente que seja uma doença", ele disse em entrevista. Spitzer defende o endurecimento dos critérios.

Alguns especialistas veem com ceticismo os estudos segundo os quais pessoas sofreram de TEPT depois de assistir à cobertura televisiva dos ataques de 11 de Setembro. O Congresso excluiu os telespectadores de seu programa de tratamento, impondo a condição de que as vítimas teriam que ter vivido ou trabalhado dentro de determinados limites geográficos.

Amy Cushing-Savvi, assistente social do Centro Médico Mount Sinai, em Nova York, que promove o programa maior, disse que um tema frequente nas reuniões dos profissionais do centro é "o que é 11 de Setembro e o que não é?" --em outras palavras, a questão delicada de como diferenciar os efeitos do 11 de Setembro dos traumas da vida cotidiana.

Os pacientes no Mount Sinai encontram um labirinto movimentado de salas onde eles são divididos em três categorias: verde (não é preciso mais avaliação), amarelo (potencialmente sintomático) e vermelho (sintomas tão graves que a pessoa pode ser suicida).

A análise dos pacientes começa em casa, quando eles preenchem um questionário de 11 páginas com perguntas sobre seu nível de energia, a frequência com que se sentem "calmos e em paz" e experiências de vida recentes como a perda de um emprego ou o término de um relacionamento.

Em uma seção do questionário intitulada "Lembranças do 11 de setembro", precisam responder se pensam frequentemente sobre o desastre e se sentem que estão emocionalmente isolados das pessoas próximas.

Em uma entrevista com um clínico, lhes é perguntado se "você pensa com frequência que seria melhor se estivesse morto", "você se sente sem valor" ou "você se sente culpado, mesmo achando que não merece sentir-se assim".

Se eles sofrem de TEPT, os pacientes geralmente recebem uma combinação de psicoterapia e medicamentos, normalmente antidepressivos; às vezes recebem soníferos também. Muitos pacientes são incentivados a fazer gravações de suas recordações, como fez Dessau, ou a escrever sobre elas até que as memórias percam sua força. É a chamada terapia de exposição.

NÚMERO DESCONHECIDO

É impossível dizer quantas pessoas sofrem de TEPT pós-11 de setembro. Os três programas oficiais de Nova York não contabilizam as pessoas que, como Dessau, recorrem a ajuda médica ou psicológica particular, nem aquelas que não receberam tratamento algum.

De acordo com cifras fornecidas pelos programas administrados pelo Departamento de Bombeiros, que trata seus próprios funcionários; por um consórcio de hospitais liderado pelo Centro Médico Mount Sinai, que trata policiais e outros funcionários de resgate e recuperação, e pelo sistema de hospitais públicos da cidade, que trata civis, pelo menos 10 mil pacientes satisfizeram os critérios nos últimos dez anos e pelo menos 3.600 deles continuam a apresentar os sintomas.

Mas mesmo esses números arredondados vêm um com asterisco: 3.000 dos 10 mil pacientes foram tratados por hospitais públicos, cujas estatísticas não diferenciam pacientes com TEPT, depressão ou ansiedade. O programa Zadroga cobre os três problemas, além de transtorno de pânico, abuso de substâncias e algumas outras condições.

Extrapolando a partir de um registro de pessoas expostas aos ataques, o departamento de Saúde de Nova York estima que 61 mil pessoas das 409 mil pessoas que estavam na área do desastre sofreram de "provável" TEPT em até seis anos após o 11 de Setembro.

Mas esses números foram apresentados por instituições e a prefeitura com dois objetivos principais em vista: fazer com que o maior número possível de pessoas se sinta melhor e tentar persuadir o Congresso a fornecer um fluxo constante de dinheiro para tratamentos.

Os programas de saúde 11 de Setembro da cidade geraram um sistema que analisa cada paciente para detectar doenças mentais e físicas, e os hospitais públicos buscaram atrair os nova-iorquinos com anúncios no metrô que diziam: "Você viveu lá? Trabalhou lá? Você merece atendimento."

Ninguém pode definir exatamente quantas pessoas foram expostas aos ataques e quantas poderão adoecer física ou mentalmente. O governo federal vai permitir que os programas do Mount Sinai e dos hospitais públicos atendam 25 mil pacientes a mais, cada um, nos próximos cinco anos.

Caberá a cada programa decidir quem tem direito ao tratamento, mas eles terão que basear-se em critérios uniformes aprovados pelo governo. A terapia pode custar US$135 por uma sessão semanal de uma semana com um psicólogo ou US$165 com um psiquiatra.

Se o governo descobrir um vínculo entre a poeira do 11 de Setembro e o câncer, existem receios de que o dinheiro se esgote, embora a intenção seja que o fundo Zadroga represente uma fonte de pagamento secundária, cobrindo o que os seguros e a compensação paga a trabalhadores não pagam.

John Howard, o administrador federal de saúde de 11 de Setembro, disse que o governo "vai tratar as pessoas à medida que elas chegarem, na medida do possível".

Com pesquisas de ALAIN DELAQUERIERE

Tradução de CLARA ALLAIN

 

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