Luciano Huck: A trilha

Brasil deveria tomar o caminho para se tornar a potência verde do planeta

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Luciano Huck

Apresentador de TV e empresário

Duvido que consigamos, no espaço de uma geração, produzir brinquedos mais baratos do que a China ou eletrônicos melhores do que Taiwan. Nenhum outro país, porém, tem as nossas riquezas naturais e a nossa vocação agrícola.

O lugar do Brasil no mundo deve ser o de maior potência verde do planeta. Uma respeitada nação agroindustrial sustentável. Uma pátria forte na produção de alimentos e referência global na proteção ambiental.

Como cidadão, venho amplificar esse debate, seguir contribuindo com o nosso país até onde minha voz alcançar.

A pandemia será um marco de uma nova era no mundo. No Brasil, um símbolo doloroso. A tragédia construída com radicalismo aloprado em relação à saúde não apenas matou mais como tornou mais aguda por aqui a recessão que o coronavírus espalhou por todos os lugares. Mas esse nosso momento errático pode significar a abertura de um novo ciclo a médio prazo.

Nunca o campo esteve tão conectado à cidade. Nunca a floresta esteve tão conectada ao campo. Nunca tudo esteve tão interligado.

Mirar no topo da produção global de alimentos e insumos vindos do campo —associada aos mais atuais e eficientes programas de controle e preservação— não é uma utopia. É viável. E as cartas já estão postas. Não é difícil encontrar bons interlocutores tanto na agenda do agronegócio quanto na agenda da sustentabilidade com narrativas convergentes e exequíveis.

Antes de tudo, é necessário romper radicalmente com as dicotomias reducionistas que se tornaram padrão do debate atual e que, infelizmente, o empobrecem: liberal ou socialista; direita ou esquerda; Estado grande ou Estado pequeno. E isso significa romper também com a ideia de que existe um litígio entre agricultura e meio ambiente, como se fossem inevitavelmente antagônicos, porque não o são, como costuma repisar o engenheiro agrônomo Alexandre Mendonça de Barros, da FGV.

O apresentador Luciano Huck - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Basta observar o que ocorre fora do Brasil e constatar a transição mundial para a economia de carbono neutro, cada vez mais veloz e assertiva. Aquilo que há 15 anos era uma aposta de “sonháticos” se tornou o cerne de uma economia de alta produtividade, que toma os mercados, dobra gigantes do setor privado como Amazon e Microsoft e está virando norma de planejamento governamental das grandes economias do planeta.

Estima-se que hoje no mundo existam US$ 50 trilhões disponíveis para investimentos em economia limpa.

São provenientes de fundos de pensão que até ontem buscavam investimentos em campos de petróleo, redes de transmissão, rodovias e polos petroquímicos. Para atraí-los, temos de abrir um diálogo conciliador e criativo, com propósito, e abandonar dogmas econômicos do século passado. Poderíamos nos inspirar em Juscelino e em seu plano de metas, o homem que pegou aquilo que parecia uma crise político-econômica sem saída e traçou um norte.

Não temos uma liderança que enxergue com clareza essa oportunidade. Pelo contrário, têm prevalecido as visões mais retrógradas, que endossam o extrativismo predador e a aceleração do desmatamento e que constrangem até mesmo os grandes representantes do agronegócio, ciosos das retaliações em curso ou em planejamento por parte do mercado comprador.

Tudo está interligado como jamais esteve.

Por meio de movimentos cívicos, tenho ecoado nossa urgente necessidade de renovação política. Mas tanto na agenda da sustentabilidade quanto na agenda do agronegócio temos uma nova geração de vozes despontando, sem as amarras do passado e com força e vontade de fazer diferente, de avançar com uma ação mais aderente ao modelo de produção, produtividade e sustentabilidade.

Da proposta para a região amazônica do cientista Carlos Nobre às ideias de produção e bem-estar animal do professor Mateus Paranhos. Das contribuições ao debate vindas da Coalização Brasil Clima, Floresta e Agricultura à condução de Marcelo Brito a frente a Associação Brasileira do Agronegócio.

Nosso Código Florestal, por exemplo, foi um enorme avanço. Pode-se discordar de um ou outro aspecto do texto, mas ele foi constituído depois de ter sido debatido em sociedade e é um balizador fundamental que nos impulsiona para um lugar melhor do que estamos.

Os agentes do Estado, aliás, deveriam ser reequipados e estimulados a fazer valer o que está no código.
Vale destacar, neste momento do Brasil em que a ciência vem sendo frequentemente afrontada, o quanto as décadas de investimento em pesquisas e em tecnologia aplicadas ao campo também nos fizeram avançar. Hoje podemos afirmar com razão que não é preciso derrubar nem mais uma árvore sequer para ampliar a nossa produção.

A produção global de alimentos acompanha a equação: o aumento da demanda devido ao crescimento populacional do planeta e a diminuição das áreas de plantio. O Brasil tem hoje 260 a 300 milhões de hectares — um terço do território nacional — dedicados à produção agropecuária, o que nos põe em segundo lugar no ranking mundial.

Temos áreas de excelência com alta produtividade, mas também um enorme contingente subaproveitado, em degradação ou abandonado. Se o padrão dos 25% mais produtivos do país fosse aplicado a toda essa área, nossa produção dobraria sem expandir em nada a área de uso e ainda recuperando áreas de alto valor para conservação, como atesta o engenheiro florestal Tasso Azevedo, do MapBiomas.

Há, claro, que se levar em conta a diversidade nas regiões rurais e a heterogeneidade do perfil dos produtores. O mais abjeto atraso e a modernidade convivem, resultado, de um lado, do processo de modernização econômica e da intensificação tecnológica e, de outro, da falta de direitos claros e constituídos.

Isso nos leva à necessidade de apoiar os pequenos e médios produtores, aqueles a quem o Estado, o mercado e os bancos muitas vezes dão as costas e a quem muitas vezes só resta a trilha da ilegalidade.

A regulação fundiária no Brasil tem de ser enfrentada. Mas não nos moldes de medidas autoritárias sacadas para premiar a grilagem criminosa.

Também merece atenção especial a água, cada vez mais escassa e preciosa no mundo. Em 2015, a Agência Nacional de Água estimou em 6,95 milhões de hectares a área irrigada na agricultura brasileira — o dobro de 15 anos antes e cerca de 10% da área cultivada.

Em 2017, o consumo de água pela agropecuária respondeu por 80% do consumo de água do país, e sozinha a irrigação correspondia a 67%. São números expressivos, ainda mais quando se sabe que o Programa Nacional de Agricultura Irrigada prevê um aumento de 5 milhões de hectares na área irrigada até 2027.

Outro ponto a ser enfrentada é o perfil atual das atividades econômicas na região Amazônica. Ainda estamos muito atrasados, dependentes de renúncias fiscais para montar geladeiras e celulares em Manaus, enquanto o mundo deseja consumir produtos da floresta, de cosméticos a tecidos, passando por alimentos e remédios.

Esta deve ser a década da bioeconomia com a floresta de pé, financiada por investimentos no negócio dos produtos naturais. Isso implica desenvolver ativos da biodiversidade com a mesma competência que desenvolvemos a silvicultura do eucalipto e do pinus ou que modernizamos o cultivo da cana e da soja. Transformar esse imenso potencial num gerador de prosperidade regional — e para o Brasil.

Finalmente, é imperativo implementar e universalizar o Pagamento por Serviços Ambientais. As florestas e a vegetação nativa conservadas prestam uma grande gama de serviços à sociedade — a disponibilidade de água com qualidade e quantidade, a limpeza do ar, a conservação da biodiversidade e a regulação e estabilidade do clima.

A remuneração pela manutenção de vegetação nativa deveria ser abrangente e envolver todos os imóveis rurais e terras indígenas, sob condicionantes explícitas: só recebe quem não está desmatando e com uma taxa de desconto relativa à proporção de vegetação nativa já desmatada e uma taxa de acréscimo proporcional ao número de anos sem desmatamento. Não se trata de recompensa pelo cumprimento da lei, mas pelo que se quer proteger além dela.

Em resumo, um grande incentivo ao não desmatamento, ao ecoturismo, à valorização da floresta viva, agregando valor a todo excedente de preservação além do que rege o Código Florestal.

Herdamos as maiores e melhores matrizes naturais do planeta, as mais equilibradas. Nenhum outro país pode oferecer produção de alimentos tão volumosa respeitando a gramática da sustentabilidade.

Somos um país que nasceu com o pensamento de que a riqueza viria da destruição da natureza. Nossa maturidade se dará pela mentalidade oposta: a da potência verde, baseada na riqueza inclusiva e sustentável e na restauração ambiental.

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