Evangélicos ambientalistas usam Bíblia para afugentar estereótipo

Coalizão de igrejas se baseia em pesquisa que mostra que maioria do segmento se importa com a causa

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O pastor Josias Vieira, 40, tem duas boas lembranças da infância. A primeira era pedir colo do avô, um pastor da Assembleia de Deus, quando adoecia. “Eu não queria ir pra médico, dizia ‘mainha, me leva pra vovô que ele vai orar, e eu vou ficar bom'.” Sarava sempre.

A segunda, a de assistir à conferência da ONU sobre meio ambiente que o Rio sediou em 1992, numa televisão de tubo paleozoica para as novas gerações. “Achava lindo! Sou uma criança que viu a Eco-92 acontecer através da telinha da Globo, aquelas imagens me encantaram muito”, conta.

Essas duas facetas, para muitos, parecem inconciliáveis num país onde a maioria dos evangélicos votou em Jair Bolsonaro, presidente que já deu reiteradas amostras de desrespeito à política ambiental.

É essa má fama que a Coalizão dos Evangélicos pelo Clima tenta desfazer. A organização, que reúne igrejas como a liderada por Josias, a recifense Batista de Coqueiral, descreve assim sua gênese: “Esta organização surge a partir de um chamado a uma ética evangélica profética, que denuncia o pecado da devastação gerada pela ganância”.

De vestido colorido, mulher jovem e negra passa por ponte em meio a árvores
Amanda Costa, 24, fiel da igreja Bola de Neve e parte da Coalizão Evangélica pelo Meio Ambiente - Eduardo Knapp/Folhapress

É de Gênesis, primeiro livro do Antigo Testamento, que o pastor Vieira pinça um dos vários versículos que, em sua opinião, despoluem a imagem do cristão que não se importa com o meio ambiente: “O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo”.

A necessidade de cultivar o planeta é algo levado a sério pela maioria dos evangélicos, segundo pesquisa do Ideia Big Data feita com 2.000 entrevistados entre 24 de agosto e 4 de setembro de 2020.

A liga ambiental-religiosa nasceu após o levantamento revelar que, embora tenham preferido Bolsonaro nas urnas, 67% dos evangélicos afirmaram que a defesa da preservação ambiental pelos candidatos influencia na hora de votar. Uma fatia ainda maior, 85%, acha pecado atacar o meio ambiente.

A sondagem, encomendanda pela agência Purpose, mostra ainda que 8 em cada 10 afiliados dessa fé gostariam que sua igreja apoiasse atividades ambientais.

Coordenadora da coalizão, Camila Mantovani, 26, explica que a pesquisa surpreendeu porque o segmento ainda tem uma imagem estereotipada no Brasil.

Segundo ela, isso acontece porque as lideranças mais proeminentes não refletem a diversidade de perfis que existe entre os fiéis. “Há um imaginário de que Silas Malafaia, Edir Macedo e Marco Feliciano representam todos os evangélicos. Isso não é verdade.”

Quando o assunto é gênero e identidade étnico-racial, essas três lideranças de fato não lembram o rosto dos evangélicos brasileiros. De acordo com o Datafolha, mulheres representam 58% dessa parcela religiosa, e os que se declararam negros e pardos são 59%.

Vieira cresceu em lar evangélico, rodeado de mulheres “amigas íntimas de Jesus”, como “vovó Mocinha, mulher negra e dada ao cultivo da terra, muito habilidosa com as ervas”. As duas avós oraram junto com sua mãe quando ele nasceu “com um caroço nas costas do tamanho de uma laranja, que hoje a gente entenderia como tumor” —acabou sumindo naturalmente.

Não são nessas figuras femininas, mas em próceres do protestantismo como João Calvino (1504-1569), que o pastor se debruça ao tentar entender por que o senso comum pensa o evangélico como alguém que quer distância da agenda verde.

“O que chegou no Brasil foi o evangelicalismo, que faz com que a gente esteja muito mais ligado a benefícios materiais, quando, na verdade, no Evangelho de Jesus está mais presente o comunitarismo", afirma.

Para Vieira, há um esforço para rotular de comunistas todos aqueles que se opõem à exploração capitalista de recursos naturais. Ele sequer gosta de usar essa palavra, porque “recurso é algo a ser utilizado, e é preciso coexistir harmonicamente com a natureza em louvor a Deus”.

"Não tenho problema com isso”, diz o pastor sobre a etiqueta ideológica. “Jesus foi comunista antes de Karl Marx nascer.”

Para Camila Mantovani, sustentar que os evangélicos são um bloco ideologicamente coeso é parte de um projeto fundamentalista baseado na eliminação de vozes divergentes.

“Se a gente tem uma bancada evangélica que se une à bancada ruralista para cometer crimes ambientais, a gente também tem uma base evangélica que sofre com o racismo ambiental”, diz ela, referindo-se a práticas que expõem grupos marginalizados a condições ambientais degradantes.

Frequentadora da Bola de Neve, igreja liderada por um pastor bolsonarista, Amanda Costa, 24, juntou-se aos Evangélicos pelo Clima por ver na Bíblia uma coordenada clara: “Ela diz que Deus se revela por meio de sua natureza. Então, é como se eu olhasse o sol e as florestas e contemplasse a manifestação da beleza divina. Se eu quero atrair a presença de Deus, preciso conservar o meio ambiente”.

A organização foi montada para dar respostas rápidas se projetos de lei que sinalizam ameaças socioambientais avançam no Congresso —para ficar em dois exemplos, tem o das concessões florestais e o da liberação de mineração em terras indígenas, ambos de 2020.

“A gente corre para as redes sociais, faz campanha de mobilização de igrejas, identifica o deputado que fala em nome de Deus e o pressiona porque estão destruindo a Criação”, diz Mantovani. Ela não consegue apontar como aliado um nome na bancada parlamentar que diz representar sua fé.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.