Crise climática e desmatamento ameaçam futuro da Amazônia, diz painel da ONU

Novo relatório corrobora pesquisas que apontam avanço do campo sobre a floresta e aumento de emissão de carbono na região

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Santarém (PA)

Uma Amazônia com campos avançando sobre a floresta, alta mortalidade de árvores, secas intensas, chuvas extremas, incêndios florestais mais frequentes, perda de biodiversidade e emissão de gás carbônico maior do que a capacidade de absorção.

Tudo isso já está ocorrendo e tende a se acelerar ainda mais caso as mudanças climáticas globais e o avanço do desmatamento, ambos resultados da ação humana, não sejam contidos. A advertência está no segundo volume do sexto relatório do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental de Mudança do Clima da ONU, divulgado nesta segunda-feira (28).

A Amazônia ocupa um lugar de destaque no estudo, realizado por 270 cientistas de todo o mundo. Para analisar a situação da maior floresta tropical do mundo, o IPCC se baseou em dezenas de artigos acadêmicos sobre a crise climática na região sobre impactos já verificados e cenários climáticos.

Desmatamento em área da cidade de Apuí, no interior do estado do Amazonas - Lalo de Almeida - 20.ago.2020/ Folhapress

No geral, o IPCC aponta uma combinação explosiva entre as mudanças climáticas globais geradas pela emissão de gases de efeito estufa e os efeitos provocados pela expansão agropecuária e a abertura de estradas, que provocam a fragmentação e a degradação da floresta.

"Na Amazônia, o desmatamento exerce uma influência sobre incêndios florestais que pode ser mais forte do que a mudança climática", diz o relatório.

Foi o caso dos incêndios florestais em Roraima entre 2015 e 2016, quando a seca severa provocada por um "super El Niño", associada à proliferação de estradas e a áreas desmatadas, provocaram a maior queimada registrada nessa região da Amazônia.

Em poucas semanas, o estado perdeu até 14 mil km2, ou 9% de sua cobertura florestal.

Esses incêndios se tornaram mais frequentes no passado recente e tendem a aumentar, mas o desmatamento fomentado pela agropecuária continua sendo a principal causa de mortalidade de árvores. Entre 1988 e 2020, a floresta perdeu, em média, 13.900 km2 ao ano na Amazônia brasileira, de acordo com o relatório. A área equivale a 13 municípios de São Paulo.


A consequência é que, de 2003 a 2008, a Amazônia como um todo passou de "sumidouro" a emissora de gás carbônico, um dos gases do efeito estufa. Em quatro lugares específicos, a região também apresentou emissões de carbono entre 2010 e 2018, em razão de desmatamento e de incêndios.

O relatório adverte de que o aumento do fogo, do desmatamento e das secas ameaça levar à conversão de até metade da floresta amazônica em uma vegetação de campo, "um ponto de virada que pode liberar uma quantidade de carbono que aumentaria substancialmente as emissões globais".

Há uma interligação grande entre clima, desmatamento, queimadas e mudanças na vegetação. A Amazônia já entrou em um novo regime de clima mais quente e altamente variável, com estações secas mais prolongadas e intensas e a severidade das secas altera o regime de fogo

Ima Vieira

ecóloga do Museu Goeldi, de Belém

"Além de causar emissões imediatas de gás carbônico, as queimadas constantes induzem mudanças na vegetação, com perda enorme de biodiversidade e alteração substancial na sua estrutura, reduzindo a capacidade natural da floresta em estocar e reciclar nutrientes. Manter grandes áreas de floresta intacta é fundamental para preservar a biodiversidade e controlar o fogo na região", afirma a ecóloga Ima Vieira, do Museu Goeldi, de Belém.

​"A maior mudança seria no que é a Amazônia hoje: um bioma eminentemente florestal. Ao alterar as condições climáticas, o ciclo hidrológico, a umidade e a biodiversidade, a funcionalidade e a sobrevivência da floresta são afetadas. Já há estudos mostrando que o leste e sul do Pará estão na iminência de cruzar um ponto crítico que os conduzirá à rápida conversão em uma formação vegetal constituída por arbustos, gramíneas e árvores de médio e pequeno portes", completa a pesquisadora.

Para a pesquisadora do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) Flávia Costa, a possível pavimentação da BR-319, entre Manaus a Rondônia, obra impulsionada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), traz o risco de levar a degradação e a fragmentação florestal a um dos lugares mais intactos da Amazônia. "Isso é um grande perigo para a manutenção do potencial de absorção de carbono", afirma.

Por outro lado, Costa ressalva que os efeitos das mudanças climáticas são bastante heterogêneos sobre a Amazônia, uma região de diferentes ecossistemas. Segundo ela, há outros aspectos que precisam de mais estudos, como a função da captura de carbono de florestas que crescem sobre lençóis freáticos superficiais, presentes em 50% de toda a região.

"Há regiões com lençol freático superficial, ainda pouco estudadas, que podem estar funcionando como sumidouro de carbono durante as secas, mas isso ainda não foi quantificado. Meu grupo de pesquisa está se debruçando sobre este aspecto do funcionamento da Amazônia para determinar se essa função de sumidouro está de fato acontecendo."

Diante desse quadro de crise climática, as políticas do Estado brasileiro vão na direção contrária das diretrizes que o relatório do IPCC aponta, segundo Ima Vieira.

"Não há políticas climáticas bem definidas no Brasil. Vimos, ainda, as políticas públicas de controle de desmatamento e queimadas, de reforma agrária, e de gestão de áreas protegidas sendo desmanteladas e/ou descontinuadas", afirma.

"Observa-se, desde 2017, um aumento expressivo do desmatamento, de grilagem de terras públicas e de ameaças à integridade das áreas protegidas, principalmente na Amazônia. Tudo isso colabora para o acirramento da crise climática."

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