Jovens movem ação climática histórica contra o estado de Montana, nos EUA

Grupo de 16 jovens afirma no processo que apoio aos combustíveis fósseis viola a constituição estadual

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David Gelles
Kalispell | The New York Times

Num domingo de neve em março, Badge e Lander Busse saíram para a floresta atrás de sua casa, seguidos por seus três cães de caça. Foi nesses bosques, ao lado do parque nacional Glacier, que os dois adolescentes aprenderam a caçar, pescar, limpar uma carcaça de cervo e tirar chumbo de caça de perdizes-cinzentas.

Foi também ali que os irmãos Busse começaram a prestar atenção aos sinais de um planeta em processo de aquecimento acelerado: as chuvas torrenciais que erodiam as trilhas na floresta, os incêndios que devastavam a terra e produziam fumaça tão espessa que os obrigava a ficar fechados dentro de casa.

Assistir à natureza selvagem que eles amavam sucumbir aos efeitos da mudança climática enfureceu os irmãos Busse, e três anos atrás eles decidiram tomar uma atitude. Juntamente com 14 outros adolescentes locais e com um grupo ambiental legal, moveram uma ação contra o Estado.

Badge (à esq.) e Lander Busse agasalhados sobre a neve em uma montanha; eles entraram com ação judicial contra o Estado de Montana
Badge (à esq.) e Lander Busse entraram com ação contra o Estado de Montana por ter violado a constituição estadual que garante 'o direito a um ambiente limpo e saudável' - Matthew Hamon - 24.mar.23/NYT

Em sua queixa, registrada em 2020, os jovens ativistas partiram de uma cláusula na Constituição de Montana que garante aos residentes do estado "o direito a um meio ambiente limpo e sadio" e estipula que o Estado e os indivíduos são responsáveis por conservar e aprimorar o ambiente "para as gerações do presente e do futuro".

Eles argumentam que, em vista dessas palavras, o apoio dado pelo Estado a combustíveis fósseis como carvão, petróleo e gás é anticonstitucional, porque a poluição resultante está aquecendo o planeta de modo perigoso e os privou de um ambiente sadio.

É um desafio legal conciso, mas que ainda não foi posto à prova, a um governo estadual que nos últimos anos descreveu uma guinada forte à direita e que está se defendendo agressivamente. O julgamento vai começar em 12 de junho na capital estadual, Helena. Segundo juristas, é o primeiro envolvendo uma ação climática constitucional.

"Até hoje quase não houve julgamentos envolvendo a mudança climática", disse Michael Gerrard, diretor do Centro Sabin de Direito da Mudança climática na Escola de Direito da Universidade Columbia. "Este é o primeiro que vai discutir os méritos da mudança climática, o que precisa ser feito e como o Estado pode ter que modificar sua ação."

As origens da ação remontam a quase uma década. Em 2011, uma organização sem fins lucrativos chamada Our Children’s Trust pediu à Suprema Corte de Montana que determinasse que o Estado tem o dever de combater a mudança climática. A Corte se negou a posicionar-se, dizendo ao grupo, na prática, para começar pelas instâncias judiciais inferiores.

Queimadas perto de  Augusta; o autor mais jovem do processo era um menino de dois anos com problemas respiratórios cujos pais disseram que sua saúde está ameaçada por incêndios florestais agravados pelas mudanças climáticas
Queimadas perto de Augusta; o autor mais jovem do processo era um menino de dois anos com problemas respiratórios cujos pais disseram que sua saúde está ameaçada por incêndios florestais agravados pelas mudanças climáticas - Matthew Hamon - 9.set.17/NYT

Assim, os advogados da Our Children’s Trust começaram a montar seu caso. Eles trabalharam com a comunidade ambiental para identificar possíveis demandantes. Catalogaram as maneiras em que a mudança climática estava afetando o Estado. E documentaram o apoio amplo dado pelo Estado à indústria dos combustíveis fósseis, que inclui emissão de alvarás, subsídios e regulamentos favoráveis.

Financiada em grande medida por fundações, a Our Children’s Trust já processou os governos de todos os 50 Estados americanos em nome de jovens. A organização está por trás da ação Juliana versus Estados Unidos, uma ação climática acompanhada com grande interesse que está pendente num tribunal distrital no Oregon e opõe jovens ao governo federal. Mas a ação Held versus Montana é o primeiro desses processos a estar indo a julgamento.

"Estamos fazendo um grande esforço para levar a geração jovem aos tribunais e fazê-lo pela ótica dos direitos humanos", disse a advogada Julia Olson, fundadora da The Children’s Trust.

Em 2020, Olson voltou a mirar contra o governo de Montana, desta vez com a ajuda de uma equipe legal maior, grande número de especialistas e 16 querelantes, incluindo os irmãos Busse.

A querelante mais velha, Rikki Held, tinha 18 anos na época e crescera num rancho de 28 mil metros quadrados em Broadus, onde, devido às condições meteorológicas cada vez mais imprevisíveis, sua família estava tendo dificuldade em suprir a propriedade de água. O querelante mais jovem era Nathaniel K, um garoto de 2 anos de Montana City com problemas respiratórios cuja saúde é ameaçada pelos incêndios florestais agravados pela mudança climática, segundo seus pais.

Os irmãos Lander e Badge Busse na garagem de sua família em Kalispell; dezesseis jovens processaram Montana porque seu apoio aos combustíveis fósseis violaria a constituição do estado
Os irmãos Lander e Badge Busse na garagem de sua família em Kalispell; dezesseis jovens processaram Montana porque seu apoio aos combustíveis fósseis violaria a constituição do estado - Matthew Hamon - 6.mar.23/NYT

Sariel Sandoval tinha 17 anos quando a ação foi aberta. Ela cresceu na reserva indígena Flathead, no norte do estado. Comentou que os huckleberries (uma espécie de mirtilo) que ela costumava colher no verão agora são mais difíceis de encontrar e que o fato de estar nevando menos no inverno fez o nível da água no lago Flathead cair, prejudicando a pesca praticada por sua tribo.

"Quando você tem esse relacionamento íntimo com a terra, é duro ver como a mudança climática a está afetando, o mal que está sendo feito", ela comentou.

No caso dos irmãos Busse, rebelar-se contra a autoridade é algo de família. O pai deles, Ryan Busse, é ex-executivo de uma fabricante de armas de fogo que se desiludiu com a indústria e passou a contestar a National Rifle Association. E, embora a professora de biologia deles na oitava série tivesse questionado em sala de aula o embasamento científico da mudança climática, Badge e Lander acabaram entendendo que um planeta que está sendo aquecido por combustíveis fósseis é má notícia para o quintal deles.

"Muitas pessoas deste Estado, inclusive nós, vivemos a vida sem parar para pensar muito no futuro. A fauna e flora silvestres, a terra e a natureza fazem parte de quem somos", disse Lander Busse, que está com 18 anos agora, na sala de sua casa, cercado por animais empalhados caçados nas florestas ao seu redor.

Os querelantes engrossaram um movimento global crescente de jovens que estão soando o alarme sobre a mudança climática, um movimento encarnado mais famosamente pela sueca Greta Thunberg, 20 anos.

Julia Olson, advogada ambiental e fundadora do Our Children's Trust, em Eugene, que está por trás do processo
Julia Olson, advogada ambiental e fundadora do Our Children's Trust, em Eugene, que está por trás do processo - Amanda Lucier - 17.out.18/NYT

Mas eles pagam um preço social por seu ativismo. "Não podemos falar do processo abertamente sem sermos atacados nas redes por nossos colegas da escola", disse Badge Busse, 15 anos.

Mesmo assim, muitos dos querelantes, incluindo os irmãos Busse e Sariel Sandoval, preveem depor no julgamento.

Em resposta à ação judicial, o Estado contestou o consenso científico avassalador de que a queima de combustíveis fósseis causa a mudança climática e negou que Montana venha sofrendo um clima cada vez mais inclemente ligado à elevação da temperatura.

Os gabinetes do governador de Montana, Greg Gianforte, e do secretário estadual de Justiça, Austin Knudsen, ambos republicanos, se negaram a comentar o caso. "Para combater a mudança climática precisamos concentrar nossa atenção na invenção e criatividade americana, não em políticas governamentais amplas e caras", disse a porta-voz do governador, Kaitlin Price. "Os Estados Unidos precisam ter uma política energética inclusiva, como Montana, para recuperar sua independência e segurança energética."

Foi em 1972 que a Constituição estadual de Montana foi emendada para incluir o trecho que garante aos cidadãos "o direito a um ambiente limpo e sadio". Isso foi feito numa convenção constitucional na qual foram adotadas revisões para reduzir a influência das indústrias do cobre e do carvão, que desde a década de 1880 exerciam forte influência sobre a política estadual. Redigida em 1889, a Constituição original foi fortemente influenciada por executivos da indústria mineradora, e as leis resultantes favoreceram esses interesses industriais.

Independentemente de quem ganhar a ação, o resultado provavelmente será objeto de recursos e será levado à Suprema Corte estadual. E, mesmo que os jovens de Montana ganhem a apelação, eles não preveem mudanças imediatas.

Em vez disso, eles buscam "alívio declaratório": querem que o juiz reconheça que os combustíveis fósseis estão causando poluição e aquecendo o planeta e que declare anticonstitucional o apoio do Estado a essa indústria.

Uma conclusão desse tipo serviria a outro propósito importante. No momento praticamente não há jurisprudência declarando que a queima de combustíveis fósseis está aquecendo o planeta de maneira rápida e perigosa. Uma vitória dos jovens de Montana ajudaria a deitar as bases para outras ações judiciais climáticas. As Constituições da Pensilvânia e de Nova York incluem garantias semelhantes de um meio ambiente sadio, e há um grupo tentando incluir essas garantias em todas as Constituições estaduais.

"Isso poderia estabelecer muitos fatos e princípios amplamente aplicáveis", disse Gerrard, da Universidade Columbia.

Se a política energética do Estado for considerada anticonstitucional, é possível que os reguladores de Montana sejam obrigados a levar a mudança climática em conta quando aprovam projetos industriais.

"Quando o processo for a julgamento, em junho, os querelantes e nossos especialistas terão a oportunidade de testemunhar no tribunal aberto, contar a história do que o governo vem fazendo e de como isso vem impactando o meio ambiente de Montana", disse Nate Bellinger, advogado chefe da Our Children’s Trust no processo. "A verdade ainda tem importância em um tribunal."

Tradução de Clara Allain

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