Descrição de chapéu Financial Times

Proposta de 'data de validade' para combustível fóssil é reviravolta na agência internacional de energia

A organização criada para proteger o suprimento de petróleo mudou sua mensagem, a fim de acompanhar a evolução da política quanto ao clima

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Anjli Raval Leslie Hook David Sheppard
Londres | Financial Times

Alguns meses atrás, um anúncio colorido apareceu na imprensa. “Para quem Fatih Birol está jogando?”, o texto questionava, e mostrava a cabeça do presidente da Agência Internacional de Energia (AIE) sobre o corpo de alguém vestido em um uniforme de futebol.

O anúncio, publicado pela Avaaz, uma organização ativista quanto ao clima, expunha a posição desconfortável da AIE, uma agência fundada para proteger os interesses dos países consumidores de petróleo, no momento em que ela começa a preparar planos para um mundo sem combustíveis fósseis.

Mas esta semana trouxe um ponto de inflexão para a organização de energia mais influente do planeta, porque a AIE publicou um relatório explosivo sobre como chegar a um total líquido zero de emissões de poluentes até 2050 —uma jogada que se seguiu a anos de campanha de investidores, ativistas do clima e até mesmo de seus países membros.

A AIE, sediada em Paris, está apelando pelo fim dos projetos novos de exploração de petróleo, gás natural e carvão, mas também pelo fim do domínio dos hidrocarbonetos. O investimento em energia precisa subir para US$ 5 trilhões ao ano até 2030, principalmente em energia limpa, ante os US$ 2 trilhões atuais, afirmou a organização.

Óleo jorra de um poço de Edwin Drake, de 1859 - Brendan McDermid - 5.out.2017/Reuters/File Photo

“Efetivamente, eles estão propondo uma data de validade para a era do combustível fóssil”, disse Mark Lewis, principal estrategista de sustentabilidade da BNP Paribas Asset Management. “É como se o dono do pub tivesse tocado o sino que anuncia o último pedido”.

É uma reviravolta drástica desde a era do embargo árabe do petróleo e da formação da agência, no começo da década de 1970. O mandato da AIE era garantir que existisse petróleo suficiente disponível em caso de perturbações no suprimento, como aconteceu na primeira guerra do Golfo Pérsico, depois do furacão Katrina e durante a crise da Líbia em 2011.

Mas da mesma forma que os governos e grandes empresas estão sob pressão para combater a mudança do clima, a AIE também precisa se reformar.

“Eles tiveram de mudar por causa da velocidade com que as autoridades decidiram fazer alguma coisa sobre o aquecimento global, e por causa do declínio acelerado no custo da energia renovável”, disse Kingsmill Bond, da Carbon Tracker. “Tiveram de se reinventar”.

O que a AIE diz importa. Suas projeções são usadas pelas companhias petroleiras para definir estratégias de investimento, pelos governos para determinar políticas de energia, e pelos investidores do mercado de ações que desejam compreender o futuro.

Sob o comando de Birol, 63, a AIE vem promovendo a segurança energética em setores que vão além do petróleo, como os de gás natural e geração de energia, expandiu seu relacionamento com os países de mercado emergente, e promoveu a eficiência energética e tecnologias de redução das emissões de carbono.

Mas a organização vem enfrentando dificuldades para rebater as críticas de que ela favorece demais os combustíveis fósseis.

Birol mesmo costumava trabalhar na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), o cartel dos grandes produtores da commodity —um sinal da proximidade entre as companhias de petróleo e gás natural e a AIE.

“O setor usou os cenários da AIE como escudo para justificar seu investimento continuado em petróleo e gás natural”, disse Andrew Logan, diretor sênior de petróleo e gás natural na Ceres, uma organização sem fins lucrativos. “Essa mudança é muito importante”.

A AIE nega veementemente que dependa do setor de petróleo e gás natural, ou que fale por ele, afirmando que sua missão é promover a segurança energética e, desde 2015, ajudar os governos em sua transição rumo a combustíveis menos poluentes.

Emergiram facções dentro da agência que defendem energia menos poluente e tecnologias que reduzam as emissões de carbono. Investidores, cientistas do clima, ambientalistas e governos também vêm fazendo lobby junto à organização de modo vigoroso.

Bruce Duguid, do grupo de investimento Hermes Investment Management, disse que “fomos a Paris e nos reunimos com Fatih em 2019, e apresentamos o argumento de que isso [um mapa de rota para zerar as emissões líquidas de poluentes] seria útil para os investidores, bem como para o planeta”.

Uma carta pública, em 2019, pedia que a AIE desenvolvesse um cenário para emissões zero —e atraiu a atenção da liderança da organização imediatamente. Alguns países membros da agência, como Holanda, Alemanha e Canadá, depois fizeram pedidos semelhantes.

“A discussão começou a ficar cada vez mais ruidosa nos últimos dois anos, mas isso coincidiu com realinhamentos políticos —Reino Unido, União Europeia, Estados Unidos e outros adotaram metas de emissões líquidas zero”, disse Rachel Kyte, diretora da Fletcher School, na Universidade Tufts, e ex-enviada especial da ONU para questões de energia limpa. “As consequências lógicas de atingir essas metas são aquilo que estamos vendo nesse relatório pela primeira vez”.

O governo Biden, nos Estados Unidos, só reforçou a necessidade de mudar.

“A definição de segurança energética está mudando”, disse Birol ao Financial Times depois da publicação do relatório.

Para a AIE, isso significa uma mudança gradual de mensagem. A agência foi de alertas sobre escassez de suprimento e sobre a necessidade de investimento mais alto à afirmação de que, apesar do acordo de Paris sobre o clima, o status quo continuaria. “Os combustíveis fósseis, especialmente o gás natural e o petróleo, continuarão a ser a base do sistema mundial de energia por ainda muitas décadas”, a AIE afirmou em 2016.

Agora, a agência não só pede pelo fim do domínio do petróleo e gás natural como seu relatório afirma que “o planeta tem um percurso viável”.

No entanto, analistas afirmam que, ao fazê-lo, a AIE corre o risco de solapar sua missão.

Os preços do petróleo estão subindo —o petróleo cru chegou a US$ 70 por barril nesta terça-feira (18), sua cotação mais alta em mais de um ano— e a queda dramática do investimento em produção nova, em meio à crise do coronavírus, significa que a AIE agora está preparando o mundo para uma escassez de oferta, diz um investidor.

Um executivo petroleiro advertiu que o relatório solidificaria as narrativas dos campos rivais, em lugar de promover um diálogo significativo e necessário sobre a mudança dos padrões de consumo do planeta.

“A AIE realmente acredita que seu cenário é atingível, ou está apenas tentando demonstrar a impraticabilidade da coisa toda?”, disse Gordon Ballard, consultor do setor de petróleo e gás natural.

Outro investidor, que pressionou pela publicação do relatório sobre emissões zero e não quer criticá-lo publicamente, disse que “eles mostraram suas conclusões em detalhe, mas não nos informaram o suficiente sobre os cálculos que fizeram para chegar lá”.

Um possível resultado pode ser que as coisas continuem como estão. As companhias de petróleo de capital aberto não têm obrigação de tomar quaisquer medidas, e os grandes países produtores ainda estão expandindo sua capacidade de produção e fatia de mercado.

Neil Atkinson, que comandou a divisão de mercados de petróleo da AIE de 2016 até janeiro deste ano, disse que “para pessoas de fora da agência, a impressão é de que ela se converteu subitamente, mas esse não é o caso, categoricamente —a agência estava preparando o terreno para divulgar esse mapa de rota já há um bom tempo”.

Tradução de Paulo Migliacci

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