É preciso reformar o sistema financeiro para enfrentar desafios ambientais, diz francesa

Representante do país europeu na OCDE veio ao Brasil para convidar Lula a participar de conferência organizada por Macron

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São Paulo

O mundo gasta por ano cerca de US$ 200 bilhões em projetos de desenvolvimento humano, proteção da biodiversidade e mudança no modelo climático.

Parece muito, mas seria preciso investir cerca de 20 vezes mais para atender aos objetivos traçados pela comunidade internacional nessas áreas, e o dinheiro público não basta. É fundamental haver uma discussão global sobre novas formas de financiamento.

A embaixadora francesa junto à OCDE, Amélie de Montchalin, em entrevista à Folha - Eduardo Knapp/Folhapress

Este foi o assunto que trouxe ao Brasil Amélie de Montchalin, 37, representante da França junto à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

Em visita ao Brasil nos dias 10 e 11 de maio, ela reuniu-se com autoridades do governo para convidar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a participar de uma conferência internacional sobre o tema que o presidente francês, Emmanuel Macron, vai promover em Paris em 22 e 23 de junho.

São esperados de 60 a 70 chefes de Estado, além de representantes do setor financeiro internacional, entidades filantrópicas e sociedade civil.

"O Brasil tem uma voz muito especial, tem coisas a dizer por causa da Amazônia, de seu modelo de desenvolvimento e em razão dos seus desafios próprios, que são muito importantes de serem incluídos no debate global que a França está organizando", afirma.

Aliada de Macron e membro de seu partido, Renascença, Montchalin exerceu diversas funções no atual governo. Ela tem uma conexão afetiva com o Brasil: viveu três anos em Campinas (SP) na adolescência, quando seu pai trabalhava na empresa Danone, e fala português com pouquíssimo sotaque.

Como foram seus contatos com autoridades brasileiras? França e Brasil têm uma relação histórica, somos vizinhos. O Brasil é o país com o qual temos a maior fronteira, somos um país amazônico também [em referência à Guiana Francesa]. Estou aqui porque o presidente Macron tem um projeto de reunir em Paris em junho líderes de muitos países para discutir e acelerar a reforma do sistema financeiro global.

É um assunto no qual sabemos que o presidente Lula tem muito interesse, porque temos a percepção comum de que, se queremos atingir nossos objetivos em termos de desenvolvimento humano, luta contra a pobreza, transição climática e proteção da biodiversidade, o funcionamento atual do sistema financeiro global não é o correto.

Não temos dinheiro suficiente, seja público ou privado, para financiar as prioridades que foram fixadas em Adis Abeba pela ONU sobre objetivos de desenvolvimento sustentável, em Paris para o clima e em Montreal sobre biodiversidade.

O Brasil tem uma voz muito especial neste debate, tem coisas a dizer por causa da Amazônia, de seu modelo de desenvolvimento e em razão de seus desafios próprios, que são muito importantes de serem incluídos no debate global que a França está organizando.

O Brasil terá a liderança do G20, esperamos que tenha a presidência da COP30 e está organizando uma cúpula sobre a Amazônia.

Retrato de mulher com óculos enquanto gesticula
Amélie de Montchalin, embaixadora da França junto à OCDE, durante entrevista em São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

Qual a proposta francesa? Algo como a taxa Tobin [cobrança de um percentual sobre transações internacionais para financiar projetos de desenvolvimento], por exemplo? Temos propostas técnicas de todos os países e temos ideias. Mas a coisa mais importante não é que seja uma cúpula francesa sobre uma ideia francesa, mas uma cúpula global em que teremos chefes de Estado, mas também o setor financeiro, grandes organizações multilaterais, bancos de desenvolvimento, sociedade civil, filantropos, fundações, para ter uma discussão para acelerar a reforma do sistema financeiro global.

Estamos em um momento muito especial. Tivemos a Covid e impactos em preços de alimentos, que estão sendo afetados pela agressão da Ucrânia pela Rússia. Estamos em um momento em que choques do clima são mais frequentes e severos. Vemos secas, enchentes. Sentimos que há crises múltiplas que precisam de meios financeiros para serem enfrentadas.

Há uma meta de quanto dinheiro poderia ser levantado? Hoje, da maneira como tradicionalmente contabilizamos ajuda internacional, são US$ 200 bilhões por ano. Segundo a ONU, precisaríamos de US$ 2 trilhões para atingir os objetivos do desenvolvimento sustentável.

Se você ouvir economistas do clima, são mais US$ 2 trilhões para a transição para emissão zero e proteção da biodiversidade. Se apenas pegarmos dinheiro público, temos de multiplicar por 20.

Isso não é muito crível e leva a muita decepção e frustração. Parte do debate em Paris será sobre mobilizar o setor privado, porque há recursos no Brasil, na França, nos EUA. Como podemos mesclar o dinheiro público e o privado para alcançar o objetivo da descarbonização da energia em alguns países? Como investir em infraestrutura social e de saúde?

A ideia seria levantar esse dinheiro e repassá-lo aos países afetados, como ocorre no Brasil com o Fundo Amazônia? Não é uma conferência de promessas de fundos, não é um momento em que as pessoas chegam com cheques. É uma discussão sobre a moldura, o sistema, a governança, os instrumentos, tanto técnicos quanto políticos.

E essa discussão política é sobre como no futuro podemos adaptar instituições que foram criadas em Bretton Woods em 1944 [FMI e Banco Mundial] para duas coisas que aconteceram desde então: o Acordo de Paris e o da biodiversidade, para alinhar o sistema financeiro com esses objetivos, que são essenciais para a sobrevivência da humanidade.

Sentimos que há um triângulo: não podemos distinguir ou separar o que precisamos fazer para as pessoas, para o clima e para a biodiversidade. O modelo de desenvolvimento do Brasil é um em que o presidente Lula e muitas outras autoridades veem o valor de pensar o desenvolvimento humano com a proteção da natureza e do clima. Em outros países, essa visão de que esses elementos não podem ser separados não é tão partilhada como é aqui.

Como a sra. vê o comprometimento do governo do Brasil com a proteção ambiental? Vemos como algo central e encorajamos tudo que pode proteger esse bem global. Algumas semanas atrás o presidente Macron esteve no Gabão, onde organizou uma cúpula sobre a floresta.

Para nós a proteção das florestas e da biodiversidade, do planeta, deve ser feita em nome da humanidade. Não estamos protegendo apenas árvores, estamos protegendo a capacidade de nossa humanidade de permanecer num planeta habitável e onde não estamos expondo cada vez mais pessoas a riscos climáticos. É uma batalha essencial.

A França tem intenção de investir no Fundo Amazônia? Não estou aqui para fazer anúncios, estou aqui para mobilizar o Brasil, a França e muitos outros países em tópicos sobre os quais concordamos, temos urgências e necessidades. Estamos muito comprometidos com a floresta. Deixe que meu presidente e as autoridades anunciem o que deve ser anunciado.

Como você sabe, a América Latina é uma das regiões mais expostas do planeta às consequências da mudança climática. Se você é pobre em um país muito exposto à mudança climática, você tem um problema duplo.

Há um sentimento em setores econômicos do Brasil de que o discurso ambiental da Europa é apenas um pretexto para protecionismo. Mencionam, por exemplo, a tentativa europeia de reabrir a discussão do capítulo sobre esse tema no acordo com o Mercosul. Como a sra. responde? A França está muito comprometida com uma ordem baseada em regras, que respeite o que diz a OMC. Precisamos dessas regras para ter comércio justo, baseado em reciprocidade e equilíbrio. O Acordo de Paris e os compromissos com a biodiversidade deveriam ser incluídos na maneira como fazemos comércio.

O comércio funciona apenas se é reconhecido como fonte de valor conjunto e legítimo para ambas as partes. Se temos regras em nosso país, não podemos importar coisas que não respeitam essas regras, porque nossos produtores dirão que é injusto.

Sei que há discussões, e não estou aqui para essas negociações. Venho de uma família agrária e nós valorizamos como a produção de alimentos é uma necessidade essencial para a humanidade. Fazendeiros estão entre os primeiros a serem impactados pela mudança climática.

A sra. está otimista sobre fechar a negociação este ano? Eu já fui ministra para assuntos europeus, não sou mais. Prefiro não debater.

Uma pergunta sobre o seu emprego atual então: o governo brasileiro anterior tinha muito interesse em se juntar à OCDE. A sra. vê o mesmo no governo Lula? Não posso falar pelas autoridades brasileiras. O Brasil é uma das dez maiores economias do mundo. A OCDE é um lugar onde tentamos resolver questões em que coordenação é essencial, como clima, comércio, inovação, tecnologia. E o Brasil tem uma voz especial.

Seria extremamente positivo se o Brasil se juntasse à OCDE, mas é uma escolha soberana e democrática. Nós, membros da OCDE, seríamos altamente apoiadores de o Brasil se juntar. A França valorizaria muito ter a voz do Brasil lá.


Raio-X

Amélie de Montchalin, 37

Nascida em Lyon (França), é graduada em História pela Sorbonne e em economia pela Universidade de Paris-Dauphine, com mestrado em administração por Harvard. Foi deputada federal (2017-19), secretária para Assuntos Europeus (2019-20), ministra da Transformação (2020-22) e ministra da Ecologia (2022). Atualmente é representante da França junto à OCDE (desde novembro de 2022).

O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.

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