No espaço de duas semanas, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, enfrentou sua primeira crise política como integrante do Governo Federal. E não foi uma crise qualquer.
Primeiro, o Congresso Nacional retirou, com aval do governo, a responsabilidade de sua pasta no processo de demarcação de terras indígenas.
Depois, em um novo movimento, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que instituiu o marco temporal para as demarcações de terras indígenas em 5 de outubro de 1988.
O primeiro movimento aconteceu em meio às negociações do governo para conseguir aprovar a medida provisória que criou a atual estrutura de órgãos e ministérios da gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Diante do risco de a medida provisória perder a validade, o governo cedeu e chancelou a retirada da demarcação da pasta de Guajajara, além de também desidratar o Ministério do Meio Ambiente, comandado por Marina Silva.
O segundo movimento, no entanto, foi o que mais deixou analistas e defensores da pauta indígena preocupados.
O marco temporal é considerado uma ameaça pelo movimento indígena sob o argumento de que ele pode paralisar novas demarcações e colocar em xeque a segurança jurídica daquelas que já foram homologadas.
A preocupação ficou ainda maior porque mostrou que, diante de um Congresso Nacional majoritariamente conservador e com uma bancada ruralista turbinada, o governo Lula não vem tendo condições políticas de impedir o avanço de pautas contrárias ao movimento indígena.
Na última sexta-feira (2), Sônia Guajajara recebeu a BBC News Brasil em seu gabinete ainda em obras, em Brasília. Ela é a primeira pessoa indígena do Brasil a ocupar um ministério de Estado.
O ministério foi criado após promessa feita por Lula ainda durante a campanha. Nos corredores do prédio, na Esplanada dos Ministérios, há tapumes por toda parte.
Líder da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) por quase uma década, Sônia Guajajara foi candidata à vice-presidência da República em 2018 e, em 2022, foi eleita deputada federal pelo PSOL de São Paulo.
À BBC News Brasil, a ministra disse não estar surpresa com o que classificou como "ataques" vindos do Congresso. Ela minimizou a falta de potência política do governo para tentar reverter as derrotas no Parlamento, disse que não pensou em se demitir após membros do governo voltarem atrás e apoiarem o relatório da MP que desidratou seu ministério e disse que não desistiria fácil.
"Não, de jeito nenhum. Imagina... (Foram) 523 anos para criar um ministério e vou entregar de bandeja na primeira pedra que aparece no meu caminho?", disse a ministra.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
Nas últimas semanas, ministros do governo e, ao que tudo indica, o próprio presidente, deram aval para desidratação da pasta do Ministério dos Povos Indígenas. A senhora se sentiu de alguma forma traída pelo presidente?
Não pelo presidente Lula. Mas o Congresso Nacional articulou muito para retirar essa atribuição do Ministério dos Povos Indígenas, que é a etapa da portaria declaratória. Quem vota é o Congresso. Quem aprovou essa medida provisória foi o Congresso Nacional. E a gente viu como eles (parlamentares) se comportaram, inclusive em relação ao projeto de lei 490 (que estabelece marco temporal para demarcações de terras indígenas) e até a retirada de outras pautas de outros ministérios. Foi uma pressão real, uma articulação forte dos parlamentares na Câmara dos Deputados.
Mas a senhora acha que o governo fez o suficiente para evitar que isso acontecesse?
O governo interviu (sic), sim. Tentaram articular, mas o relator, o [Isnaldo] Bulhões (MDB-AL), já chegou irredutível dizendo que o Congresso Nacional não apoiaria e que ele não teria força de conseguir a manutenção dessa pasta aqui no Ministério dos Povos Indígenas.
Quando o relatório foi aprovado, os ministros da articulação política disseram que tentariam reverter. Depois disso, eles disseram que iriam apoiar aquele relatório, dando aval à desidratação da sua pasta. A senhora disse recentemente que se sentiu frustrada com isso. Qual o seu sentimento hoje?
É claro que eu não posso dizer que fiquei totalmente satisfeita, porque o ato declaratório [para demarcação de terras indígenas] é uma das principais pautas do Ministério dos Povos Indígenas e, inclusive, uma das principais razões para ele ter sido criado. Porém, essa atribuição já era do Ministério da Justiça e tendo o Flávio Dino como ministro da Justiça, ele assumiu toda a responsabilidade de não paralisar os processos que estão em andamento. Então, nós sentimos aqui essa confiança no ministro Flávio Dino de que nossas pautas irão continuar avançando e também com o compromisso do presidente Lula.
O que aconteceu nas últimas duas semanas teve, obviamente, repercussão internacional. Especialmente porque, durante a posse, o presidente Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto na companhia do cacique Raoni, que é uma figura internacionalmente conhecida. Diante de tudo que aconteceu, surge a questão: o presidente Lula subir a rampa com Raoni dando a entender que daria apoio total à causa indígena foi apenas um jogo de cena?
Não creio que foi um jogo de cena. O presidente Lula está muito comprometido com a questão indígena. Já tem dado muitos sinais importantes. Nós assinamos seis homologações [de terras indígenas]. Durante dez anos, foram apenas 11 terras homologadas e, em quatro meses, nós conseguimos a assinatura de seis. [...] Isso não esvaziou o ministério. Tirou uma das partes que para nós era uma das principais demandas, mas ações para a gente fazer aqui não faltam.
A senhora disse numa entrevista que a retirada da demarcação de terras da sua pasta removia o coração do seu ministério. Seu ministério corre o risco de se tornar um ministério decorativo sem essas atribuições?
Não, de jeito nenhum. Tiraram o ato declaratório. Mas nós estamos também nesse diálogo para que o ministério tenha a participação nesse processo, que é o processo demarcatório. E temos a garantia tanto do presidente Lula quanto do ministro Flávio Dino de que o ministério vai participar sim desse processo.
Ao longo de todo esse processo, a senhora pensou em pedir demissão?
Não, de jeito nenhum. Imagina... 523 anos para criar um ministério e vou entregar de bandeja na primeira pedra que aparece no meu caminho? Nós vamos continuar trabalhando e lutando para fortalecer cada vez mais esse ministério, para consolidá-lo como um ministério que vai ter continuidade.
Há uma contradição entre o discurso que o presidente faz, inclusive internacionalmente, de defensor da pauta ambiental, de defensor da pauta indígena e a prática, quando, em menos de cinco meses, pressionado pelo Congresso, ele topa desidratar tanto a sua pasta quanto a pasta do Ministério do Meio Ambiente?
Eu acho que não é bem o presidente Lula topar. Há uma incompreensão por parte do povo do Congresso Nacional sobre aquilo que realmente é de interesse do Brasil. No governo Lula, o presidente tem assumido vários compromissos de fortalecer a pauta ambiental e de reduzir o desmatamento ou zerar o desmatamento até 2030, de fortalecer a política climática. São três pautas que o presidente Lula tem colocado como uma das prioridades no seu governo. E o Congresso Nacional tem agido, inclusive, como uma reação a essa afirmação e à efetividade dessas políticas no governo Lula. Eles querem, de qualquer forma, constranger ou evitar que essas pautas avancem, porque eles são contrários. A maioria no Congresso Nacional é contrária à proteção do meio ambiente porque querem avançar cada vez mais com a política desenfreada do agronegócio. Isso não é uma contradição do presidente Lula.
Por um lado, há um governo que precisa da governabilidade diante de um Congresso majoritariamente conservador e, como a senhora mencionou, aparentemente contrário às pautas ambientais e às pautas indígenas. A senhora teme que, nesse contexto, um governo que precisa da governabilidade vá sacrificar ainda mais pastas como da senhora e a de Marina Silva?
Eu não posso garantir que ele vai ceder. Eu só acho que eles precisam se articular mais com o Congresso Nacional para evitar que ocorram mais perdas.
Então, na sua avaliação, houve falha na articulação política que resultou no que aconteceu no Congresso?
O Congresso sabe muito bem o que quer. Eles foram eleitos para defender as suas pautas e eles têm maioria. Eles se articularam. Não tinha como reverter essa situação, porque eles já estavam muito bem definidos sobre as pautas às quais eles iriam aderir ou não.
A senhora teme que novos ataques possam acontecer e o governo não tenha como reverter a situação?
Eu não duvido que até o final desses quatro anos eles vão continuar investindo muito para que o governo Lula não implemente a sua política. Mas nós vamos estar aqui para tentar evitar o máximo que puder. Se a gente vai conseguir ou não, eu também não posso garantir. Mas nós vamos estar sempre de pé, como sempre estivemos na luta, com o apoio do movimento indígena, nessa parceria com o Ministério do Meio Ambiente, com outros ministérios, para que a gente possa evitar mais danos ou perdas.
Nas últimas semanas, houve a aprovação pela Câmara do projeto de lei que estabelece o marco temporal para demarcação de terras indígenas. O que significa o marco temporal para os povos indígenas?
Então, o PL (projeto de lei) 490 é um risco geral pois ele tenta impedir toda e qualquer demarcação de terras indígenas para explorar os territórios e ainda transferir essa responsabilidade para o Congresso. Ele é muito danoso aos direitos indígenas. Nós estamos também nessa articulação com o Senado, com o Supremo, para que seja questionada a inconstitucionalidade desse projeto de lei 490. No STF, está marcada a retomada do julgamento para o dia 7 de junho. [Se for aprovado o marco temporal], o tamanho do prejuízo é que as terras demarcadas de 1988 para cá podem ser questionadas, e eles podem querer rever os processos de demarcação já concluídos, além de impedir novas demarcações e os novos processos que estão já em andamento.
Agora, o que isso significa lá na ponta? O que isso significa para os povos indígenas que já tiveram suas terras demarcadas?
Além de um retrocesso, é uma insegurança total para os povos indígenas. [...] Isso é realmente muito perigoso, porque a gente já tem um passivo muito grande de terras indígenas a demarcar no Brasil e o marco temporal ainda pode desestabilizar muito mais esse processo.
Na sua avaliação, o presidente Lula não poderia ter feito mais para evitar esse resultado lá na Câmara?
Olha, o governo fez o que pôde. Garanto que fez. Inclusive, quase que não consegue nem aprovar a própria medida provisória que estabelecia os órgãos de governo.
Se o governo fez o que pôde e mesmo assim não conseguiu [evitar a aprovação do PL 490], a senhora teme pelo futuro do que pode acontecer em relação à pauta indígena nessa composição de um governo que não tem maioria [no Congresso]?
A gente sempre teme. Não tem como não temer. Afinal de contas, nós estamos aqui por pura resistência, por pura insistência. Para continuar a garantir esses direitos. Porque a tentativa [das forças políticas contrárias] sempre foi essa mesmo: a de acabar com direitos indígenas, de não cumprir. E o Congresso Nacional tem se fortalecido cada vez mais nessa tentativa de destruir os direitos indígenas.
A votação do marco temporal na Câmara mostrou que o Parlamento é capaz, sim, de aprovar pautas a despeito do interesse do governo. Como é para a senhora ser a primeira pessoa indígena, a primeira mulher indígena, a ocupar um ministério no Brasil, ao mesmo tempo em que vê o Congresso aprovando pautas consideradas pelo movimento indígena como anti-indígenas?
Te garanto que para mim não fico surpresa com essa votação do Congresso, porque nunca foi diferente. A minha vida inteira, durante os dez anos em que eu estive à frente da Apib, sempre foi ali tentando conter a aprovação dessas medidas e eles sempre vieram pra cima desse jeito, sabe? Então, a diferença agora é que eu estou no lugar de governo, né? Mas a luta vai chegar mesmo.
Mas como a senhora está no governo, essa situação traz algum tipo de frustração maior para a senhora?
Não traz porque eu já vivo isso a vida inteira, né? Eu realmente não tenho surpresa com esse comportamento e esses ataques que vêm do Congresso Nacional.
O ministro Kassio Nunes Marques, do STF, que votou a favor do marco temporal, disse que a não adoção dessa regra causaria uma insegurança jurídica muito grande no Brasil, à medida em que terras que já estariam incorporadas ao mercado imobiliário poderiam ser reivindicadas como terras indígenas. Qual sua avaliação sobre esses argumentos?
Quem é contra a pauta indígena, quem é contra demarcações, sempre tenta confundir muito a opinião pública. Eu não tenho dúvida que tem muitas terras indígenas que hoje estão sobrepostas por vários outros tipos de empreendimentos. [...] Agora, isso não quer dizer que nós estamos reivindicando todas as áreas no Brasil. [...] Mas nós temos, sim, um mapeamento das terras indígenas que são reivindicadas. E tem um limite para isso, né? A forma como eles colocam é que isso seria ilimitado e que a gente está reivindicando Copacabana e a Avenida Paulista. Bom, se você considerar os primeiros habitantes do Brasil, se considerar quem estava aqui desde 1500, é claro que os povos indígenas teriam direito sobre todas as terras. Mas o que hoje a gente reivindica não é isso.
Uma das críticas frequentes de quem é contra o marco temporal reside no fato de que hoje, no Brasil, 13% do território nacional é composto por terras indígenas ou reservas indígenas. No entanto, os indígenas, segundo o IBGE, representam 0,45% da população. Setores como o agronegócio questionam: por que mais terras?
E por que eles não questionam também que 46% do território nacional está na mão da propriedade privada rural? É um dado a se questionar. A diferença é que as terras indígenas são de usufruto coletivo. Não é individual. E é exatamente nas terras indígenas onde há a maior biodiversidade protegida, as maiores áreas de floresta em pé e as maiores áreas de nascentes de água, que é o que todo mundo precisa. Então, esses 13% de território indígena hoje no Brasil já incluem inclusive a maioria das que estão sendo reivindicadas, que não têm processo de demarcação concluído.
A Constituição prevê a possibilidade de mineração em terras indígenas, embora isso nunca tenha sido regulamentado. Há um projeto que foi apresentado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) que prevê a mineração em terras indígenas. Por que a senhora é contra a mineração em terras indígenas?
A Constituição fala que tem que se ouvir o Congresso Nacional e as partes envolvidas para que se possa tomar essa decisão. Então, hoje nós não temos no Brasil nenhuma legislação para explorar a mineração em terras indígenas. O PL 191, que foi apresentado pelo ex-presidente, tentava legalizar a mineração em terras indígenas, porém ele não foi aprovado. [...] E nós somos contra, sim, porque nós temos exemplos cruéis do que representa a mineração. Nós temos aí os casos de Brumadinho e Mariana [rompimentos de barragens de mineração ocorridos em 2015 e 2019, em Minas Gerais] que tanto trouxeram prejuízos ambientais, contaminando os rios e impedindo as pessoas de se banhar, de nadar, de exercer sua cultura, além de matarem muita gente. Nós temos consequências drásticas da presença do garimpo dentro dos territórios indígenas. O fato de legalizar não quer dizer que vai resolver esses problemas e que eles não vão existir. O garimpo traz prostituição, alcoolismo, doenças, drogas, além de alterar totalmente o modo de vida dos povos indígenas em seus territórios.
Em países como os Estados Unidos e o Canadá, algumas comunidades dos povos originários recebem royalties a partir da exploração tanto de minérios quanto de petróleo. Essa política de não permitir a exploração desses recursos não acaba empurrando para a ilegalidade parte de populações indígenas, como os Cinta Larga de Rondônia ou os Munduruku do Pará, considerando que alguns deles exploram e apoiam a atividade garimpeira?
O que se tenta divulgar sempre é que tem indígenas favoráveis e não se amplia que a maioria dos indígenas é contrária. [...] É importante que se diga que a maioria não está de acordo. O que a gente quer, sim, são políticas públicas adequadas. A gente quer acesso à educação de qualidade, a uma saúde eficiente. A gente quer essa presença do poder público nesses territórios indígenas e que se garanta proteção ambiental, a proteção dos territórios. [...] É bem diferente dos Estados Unidos. [...] O [ex-presidente] Bolsonaro, quando era deputado, chegou a dizer que eficiente mesmo era a cavalaria dos Estados Unidos que acabou com todos os povos indígenas, e hoje eles (os norte-americanos) não têm esse problema. Nos Estados Unidos, há sim indígenas que se beneficiam [com a exploração de recursos naturais]. Mas, por outro lado, cadê a cultura? Acabaram com a cultura desses povos. E aqui, a gente luta muito para manter nossa identidade, nosso modo de vida e a nossa cultura viva.
Essa declaração do ex-presidente Bolsonaro foi feita há mais de 15 anos, aproximadamente. A senhora acha que ainda hoje há pessoas que pensam dessa forma em relação aos indígenas brasileiros?
Acredito que sim. Afinal de contas, o Bolsonaro deixou muitos discípulos.
Quais alternativas econômicas estão sendo oferecidas aos povos indígenas que possam competir com o lucro da exploração ilegal de madeira, pescado e de ouro, por exemplo, na Amazônia?
Acho que não é exatamente competir. É a gente fortalecer as atividades que os povos indígenas já fazem hoje e que nem sempre são valorizadas. Muitos indígenas, hoje, têm a sua produção própria. Desde que seja de forma sustentável, nós aqui também estamos trabalhando formas de apoiar essa produção indígena. O que a gente não quer é entregar os territórios indígenas para que sejam arrendados ou explorados para exportação, por exemplo. Então nós temos que fortalecer sim a economia indígena, conforme as iniciativas próprias já praticadas.
Diante desse cenário tão complexo da relação do governo com o Congresso, a senhora tem um limite de até onde pode chegar para se manter no governo?
Olha, eu não posso prever. É claro que eu não posso prever agora que limite é esse. Assim como também eu não vou ficar se não houver um avanço nas políticas sociais, nas políticas que a gente defende para os povos indígenas. O presidente Lula falou para mim: "Soninha, você está ministra para fazer diferença na vida dos povos indígenas. E você não está aqui só pelo cargo". Ele mesmo falou isso para mim. Eu disse: "Certamente que não". Eu vou até onde achar que está sendo benéfico, onde a gente tiver espaço para continuar defendendo e fazendo essa diferença que ele mesmo defende.
Mas em termos de medidas, a senhora enxerga um limite até onde consegue ir?
Não sei o que pode vir pela frente. Vamos tentar ver como é que rola.
Este texto foi originalmente publicado aqui.
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