O Grand Canyon, uma catedral do tempo, está perdendo seu rio

À medida que o planeta se aquece, a neve escassa está privando o rio em suas nascentes nas Montanhas Rochosas, e temperaturas mais altas estão roubando mais dela através da evaporação

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Raymond Zhong
The New York Times

Lá embaixo, sob as pousadas para turistas e as lojas que vendem chaveiros e incenso, passando por riachos intermitentes varridos pelos ventos e vales marrons pontilhados de agave, juníperos e artemísia, as rochas do Grand Canyon parecem atemporais. As mais antigas datam de 1,8 bilhão de anos atrás — não apenas eternidades antes de os humanos primeiro colocarem os olhos nelas, mas eternidades antes de a evolução ter dotado qualquer organismo deste planeta de olhos.

Passe tempo suficiente no cânion e você mesmo pode começar a sentir-se um pouco desligado do tempo. Os paredões imensos formam uma espécie de casulo que protege você do mundo moderno, com seu sinal de celular, sua poluição luminosa e suas decepções. Eles atraem seu olhar sempre para o alto, como em uma catedral.

Você talvez pense que está enxergando até o topo do cânion. Mas mais acima e além há mais paredões, e acima deles ainda mais, fora das vistas exceto por um vislumbre ocasional. Isso porque o cânion não é apenas profundo. É largo também: 29 quilômetros de um lado a outro, em seu ponto mais largo. Não é uma mera catedral de pedra. É um verdadeiro reino: enorme, autocontido, uma realidade alternativa que existe majestosamente fora da nossa.

Visão geral do Grand Canyon; o rio Colorado quase some no fundo do cânion
Visão geral do Grand Canyon; o rio Colorado quase some no fundo do cânion - Raymond Zhong/NYT

Porém o Grand Canyon continua atrelado ao presente em um ponto chave. O rio Colorado, cuja energia selvagem entalhou o cânion ao longo de milhões de anos, está em crise.

À medida que o planeta se aquece, há menos neve, e a falta de neve está privando de água as nascentes do rio, nas Montanhas Rochosas, ao mesmo tempo em que a temperatura mais alta rouba mais água por meio da evaporação. Os sete estados servidos pelo rio estão usando cada gota de água que ele consegue fornecer, e, embora um inverno úmido e um acordo recente entre os estados tenham afastado o colapso do rio por enquanto, sua saúde no longo prazo permanece em dúvida profunda.

O Colorado flui tão abaixo das bordas do Grand Canyon que muitas entre os 4 milhões de pessoas que visitam o parque nacional todo ano o enxergam apenas como um fiapo, brilhando ao longe. Mas o destino do rio tem importância profunda para o cânion, de 450 km de extensão, e o modo como gerações futuras vão conhecê-lo. Nossa subjugação do rio Colorado já deslanchou mudanças amplas nos ecossistemas e paisagens do cânion. São mudanças que um grupo de cientistas e pós-graduandos da Universidade da Califórnia em Davis se propuseram a ver em primeira mão, viajando em botes infláveis: uma viagem lenta através do tempo profundo, em um momento em que o relógio da Terra parece estar acelerando.

John Weisheit, um dos líderes da entidade conservacionista Living Rivers, vem percorrendo o Colorado de balsa há quatro décadas. Ele disse que ver quanto o cânion mudou durante sua vida o deixa "tremendamente deprimido. Sabe como você se sente quando vai ao cemitério? É como eu me sinto."

Mesmo assim, ele continua a ir ao cânion, mais ou menos a cada ano. "Porque a gente precisa rever um velho amigo."

Eras e tempos imemoriais atrás, este lugar era um mar tropical, com seres semelhantes a caracóis e que tinham tentáculos rastreando suas presas debaixo das ondas. Depois disso virou um vasto deserto arenoso. Mais tarde, voltou a ser um mar.

Em algum momento, energia vinda das profundezas da Terra começou a empurrar uma grande seção de crosta terrestre em direção ao céu e no caminho de rios antigos que cruzavam o terreno. Durante dezenas de milhões de anos a crosta foi sendo impelida para cima e os rios fluíram para baixo, esculpindo a paisagem com esse sobe e desce. Um abismo se abriu, que a água serpenteante uniu ao longo do tempo com outros cânions, formando um só. As condições meteorológicas, a gravidade e os movimentos das placas tectônicas distorceram e esculpiram as camadas expostas de pedra em volta, criando formas fluidas e fantásticas.

O Grand Canyon é um espetáculo planetário sem igual —e que por acaso abriga um rio do qual 40 milhões de pessoas dependem para seu abastecimento de água e energia. E o evento que cristalizou essa dualidade estranha e intranquila —que mudou quase tudo para o cânion— parece quase pequeno em comparação a toda a turbulência geológica que ocorreu antes: a construção de um paredão de concreto 24 km rio acima.

Desde 1963 a barragem Glen Canyon vem represando o rio Colorado por quase 320 quilômetros, na forma do segundo maior reservatório da América, o lago Powell. Engenheiros avaliam as necessidades hídricas e elétricas constantemente para decidir quanto da água do rio deixar passar pela barragem e sair na outra extremidade, primeiro para o Grand Canyon, depois para o lago Mead e finalmente para os campos e as casas do Arizona, Califórnia, Nevada e México.

Cientistas fazem rafting no rio Colorado em uma das suas corredeiras por entre os paredões de pedra e areia
Cientistas fazem rafting no rio Colorado em uma das suas corredeiras por entre os paredões de pedra e areia - Raymond Zhong/NYT

A barragem processa os fluxos desiguais do Colorado —que pode ser um fiapo de água em um ano e uma enxurrada violenta no ano seguinte— para que seja algo menos extremo nas duas pontas. Para o cânion, porém, a regulação do rio trouxe custos ambientais pesados. E à medida que a água continua a diminuir em função da estiagem e do consumo excessivo, esses custos podem subir.

Alguns meses atrás o nível da água no lago Powell estava tão baixo que quase não havia o suficiente para girar as turbinas da barragem. Se ela cair para abaixo desse nível nos próximos anos —e tudo indica que isso pode acontecer—, a geração elétrica será paralisada, e a única maneira em que a água sairá da barragem será por quatro tubulações situadas mais perto do fundo do lago. Com o nível do reservatório caindo ainda mais, a pressão que empurra a água por esses canos pode diminuir, de modo que volumes cada vez menores sairão do outro lado.

Se o nível de água caísse muito mais que isso, os canos começariam a sugar ar, e com o tempo o lago Powell viraria uma "lagoa morta": nem uma gota d’água passaria pela barragem enquanto a água não voltasse a chegar até as tubulações.

Tendo em mente essas dúvidas quanto ao futuro do rio Colorado, os cientistas da UC David inflaram botes azuis numa manhã fresca de primavera. No quilômetro zero do Grand Canyon, a vazão do rio é de cerca de 2.134 metros cúbicos por segundo, subindo na direção de 2.743 —não o fluxo mais baixo já registrado, mas longe de ser o mais alto.

O grande problema do baixo nível de água no cânion, aquele que agrava todos os outros, é que as coisas param de se mover. O rio Colorado é uma espécie de sistema circulatório. Seu fluxo esculpiu o cânion, mas também o sustenta, tornando-o propício para plantas, fauna e humanos que o percorrem em botes. Para entender o que aconteceu desde que a barragem começou a regular o rio, consideremos primeiro as coisas menores que a água desloca ou deixa de deslocar.

Em sua descida das Rochosas, o rio Colorado acumula quantidades imensas de areia e lodo, mas a barragem impede basicamente tudo isso de seguir caminho e entrar no Grand Canyon. Afluentes situados rio abaixo, incluindo o Paria e o Little Colorado, acrescentam alguns sedimentos ao Colorado, mas muito menos do que fica retido no lago Powell. E quando a vazão de água é fraca, mais sedimento acaba ficando depositado no leito do rio.

A Caverna Redwall e os celeiros de Nankoweap, construídos há mil anos, no Grand Canyon perto do rio Colorado
A Caverna Redwall e os celeiros de Nankoweap, construídos há mil anos, no Grand Canyon perto do rio Colorado - Raymond Zhong/NYT

O resultado é que as praias arenosas do cânion, onde vivem animais e onde as pessoas que percorrem o rio acampam à noite, estão encolhendo. Praias que no passado tinham a largura de grandes rodovias hoje são mais parecidas com estradas de duas pistas. Outras encolheram ainda mais.

Além de areia, o rio está deixando de levar objetos maiores para o cânion. Pedras pequenas e grandes periodicamente caem no rio, vindas de centenas de afluentes e cânions secundários, muitas vezes durante enchentes, criando curvas e corredeiras no rio. Com menos fluxos fortes de água para transportar esse material, mais dele está se empilhando naquelas curvas e corredeiras. Com isso, muitas corredeiras ficaram mais íngremes, e os caminhos nos quais os barqueiros as navegam se estreitaram.

É a sexta noite dos cientistas da UC David no Colorado, e os pós-graduandos estão sentados em cadeiras de camping, refletindo sobre o que viram.

Eles estão se preparando para carreiras de acadêmicos, peritos e pessoas que traçam políticas públicas —pessoas que vão ajudar a determinar como convivemos com as consequências ambientais de escolhas passadas. Escolhas como o represamento de rios.

Yara Pasner, doutoranda de hidrologia, diz que sente o dever de reduzir a carga sobre as gerações futuras, mesmo por que –ou talvez simplesmente por que —nosso antepassados não nos fizeram essa cortesia. "Havia a mentalidade de que ‘nós estragamos as coisas e a geração futura terá mais ferramentas para consertar’." Em vez disso, ela comentou, descobrimos que as consequências de muitas decisões passadas são mais difíceis de se lidar do que se imaginava.

Tradução de Clara Allain

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