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Planeta em Transe Folhajus

Para o indígena, a terra é uma extensão do corpo

Em meio ao debate do marco temporal, um tratado filosófico: não falamos da mesma terra quando ela é significada por brancos ou por povos originários

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São Paulo

Primeiro, achei que era uma metáfora o que meu professor do mestrado contava sobre seu aprendizado com as culturas indígenas da Colômbia. "Para eles, o rio é uma continuação das suas veias, do seu sangue", ensina Stephan Harding, doutor em ecologia pela Universidade de Oxford.

Achei poético —como se não fosse também literal. Minha visão limitada considerava óbvia, afinal, a separação física entre um rio e um corpo humano.

Foi só ao final do curso —que propunha justamente uma abordagem holística para as ciências ambientais— que consegui aceitar a verdadeira obviedade: se bebemos a água do rio, é claro que ela passará a compor nosso corpo. O rio, sim, continua nas nossas veias. A gente, infelizmente, só se dá conta disso quando uma contaminação ambiental nos atravessa a saúde.

Vista área de grandes ocas em meio à floresta
Aldeia Mynawa na Terra Indígena Waimiri-Atroari, que fica entre Roraima e Amazonas - Lalo de Almeida - 1º.set.2022/Folhapress

Para que o país possa discutir a tese jurídica do marco temporal, é preciso, antes, estabelecer um tratado filosófico: não falamos da mesma terra quando ela é significada por brancos ou por indígenas.

Para nós, a terra é o chão, onde se pisa, ou ainda uma propriedade que nos pertence. Já na visão indígena, os humanos é que pertencem à terra. Ela é uma extensão dos seus corpos.

O significado amplo implica um limite físico: a terra indígena é aquela que contorna um povo.

Boa parte das 732 terras indígenas do Brasil já foram demarcadas: são 490 territórios homologados. Outras 74 foram declaradas mas ainda aguardam a conclusão do processo, enquanto 43 já estão identificadas pela Funai e 125 ainda estão em processo de identificação.

Somadas as terras já homologadas e aquelas ainda em processo de reconhecimento, as terras indígenas compõem 13,8% do território nacional —que, vale lembrar, tem o tamanho de um continente.

O Brasil é um dos poucos países com terra disponível para conservação, ocupação e produção agrícola. Mais do que espaço físico, os conflitos por terra disputam poder econômico e político —significados que nós, brancos, atribuímos à terra.

A conclusão do processo de demarcação é um passo fundamental para garantir a segurança jurídica e física dos povos indígenas, que vivem ameaçados em conflitos com invasores.

Igualmente, a segurança jurídica de proprietários rurais também precisa ser assegurada. O debate sobre o marco temporal tem ofuscado uma origem legítima das demandas do setor: fazendeiros que eventualmente sejam desapropriados precisam ser indenizados pelo Estado.

A compensação precisaria também considerar o valor da terra nua e não apenas das benfeitorias feitas no terreno, como se restringe atualmente.

O rumo da segurança jurídica passa, inescapavelmente, pela regularização fundiária.

Entretanto, a bancada ruralista, que defende a pauta do marco temporal no Congresso, tem sistematicamente votado pelo adiamento dos prazos para que invasões recentes a terras públicas possam ser regularizadas.

Ao defender a renovação dos marcos temporais para a regularização fundiária, a bancada ruralista ignora o prejuízo que as invasões de terras por grileiros causa à imagem do agronegócio exportador —que já é alvo de legislação na União Europeia para conter a importação de commodities ligadas a desmatamento.

A proteção contra o desmatamento é um dos serviços prestados pelas terras indígenas, que compreendem espaços para roçados, caça, pesca e também áreas sagradas e intocáveis, que garantem a riqueza da biodiversidade, além de prover regulação climática e hídrica.

Como a mentalidade branca e ocidental não compreende essa riqueza —"não tem nada lá, é tudo mato"—, diversas pesquisas procuram estimar o valor monetário dos serviços prestados pelas terras indígenas.

A título meramente ilustrativo: os serviços ecossistêmicos fornecidos por terras indígenas no Brasil, na Bolívia e na Colômbia equivalem a benefícios de até US$ 1,5 trilhão (R$ 7,3 trilhões) ao longo de 20 anos, segundo um estudo do WRI (World Resources Institute) publicado em 2016.

Dois filmes em exibição na 12ª Mostra Ecofalante, em São Paulo, traduzem, através de entrevistas com lideranças indígenas, o abismo semântico sobre a terra.

"A riqueza não está embaixo da terra, nos minérios, está aqui em cima, na vida, na cultura", diz Alessandra Munduruku no documentário "Escute: a Terra Foi Rasgada".

Alessandra rema uma pequena embarcação em um igarapé enquanto olha para o alto em meio à floresta.
Liderança indígena Alessandra Korap Munduruku, reconhecida com o Prêmio Goldman de Meio Ambiente de 2023 - Goldman Environmental Prize/Divulgação

"Tem gente que, quando toca na terra, não sente nada. Mas tem gente que, ao tocar, sente a terra empurrar de volta", diz o indígena americano Henry Red Cloud no documentário "Nação Lakota contra os EUA".

As culturas indígenas carregam no seu cerne a compreensão das relações ecológicas que nós, brancos, precisamos de muito estudo para conseguir assimilar.

Além disso, atribuem à ecologia uma dimensão espiritual, através da qual a devoção aos espíritos, aos antepassados e à natureza se unem em uma só visão de mundo. O divino indígena não escapa da realidade terrena; ele habita a terra. Não é a ela que literalmente retornamos após a morte, afinal?

"Meu pai morreu; ele agora faz parte desta terra", diz O-é Paiakan Kayapó, filha do líder Paulinho Paiakan, em uma cena de "Escute: a Terra foi Rasgada".

No mesmo filme, Kirixi Rewu͂n Munduruku questiona a invasão garimpeira: "Por que eles vêm aqui? Eu não vou lá no território deles".

Diferente da sanha expansiva dos brancos, que avançam para novas terras, o sonho indígena é permanecer na terra à qual pertencem.

Indígenas, afinal, não reivindicam a posse da terra onde não vivem. Quem faz isso são grileiros —a eles, urgentemente, é preciso impor um marco temporal.

O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.

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