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Planeta em Transe mudança climática

Antropoceno significa crise múltipla da nossa espécie como força geológica

Muito além de propaganda ambientalista, nova época proposta por cientistas alerta que limites planetários estão sendo ultrapassados

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São Carlos (SP)

As grandes transições da história geológica do nosso planeta normalmente correspondem a processos que, do ponto de vista da nossa espécie, parecem ser de longuíssimo prazo, desenrolando-se por centenas de milhares de anos.

Só há duas exceções claras a essa regra: a queda do corpo celeste que encerrou o reinado dos dinossauros há 66 milhões de anos; e o início do Antropoceno, a época da humanidade, em meados do século 20.

É verdade que a proposta para convencionar o ponto inicial exato do Antropoceno (os sedimentos datados dos anos 1950 extraídos do fundo do lago Crawford, no Canadá, conforme anúncio nesta terça-feira) ainda tem um caminho considerável a percorrer antes que seja sacramentada pela comunidade científica.

Mas as semelhanças com os efeitos do bólido que atingiu a Terra há dezenas de milhões de anos são significativas —decerto, em parte, porque a analogia não escapou aos próprios geólogos responsáveis pela ideia.

Lago com água refletindo o céu e as nuvens
Lago Crawford, na província de Ontário, no Canadá; local foi sugerido por grupo de cientistas como referência do começo do Antropoceno - Adobe Stock

Em ambos os casos, estamos falando de fenômenos que aconteceram num momento claramente definido do tempo e que foram capazes de produzir uma "assinatura" de seu impacto em escala planetária —uma marca registrada que não é passível de ser confundida com a de outros eventos.

No caso do fim da Era dos Dinossauros, a assinatura em questão inclui uma fina camada de irídio, metal muito mais comum em meteoritos do que na crosta terrestre, o que fortalece a ideia de que a tragédia foi causada por um objeto que despencou no nosso planeta.

Já um dos marcadores do início do Antropoceno é a presença de isótopos (variantes de elementos químicos) radioativos que a Terra não costuma produzir por meios naturais, mas são resultado dos testes de armas nucleares nos primeiros anos da Guerra Fria entre os EUA e a União Soviética.

Outras semelhanças entre os dois eventos são mais insidiosas e preocupantes. De um lado, o impacto do meteorito há 66 milhões de anos produziu uma série de efeitos diferentes —incêndios em escala planetária, um possível estímulo ao vulcanismo, aumento drástico da acidez dos oceanos e um "inverno nuclear" com anos de duração.

Já a deflagração do Antropoceno, ainda que seja muito menos drástica no curto prazo (ou enquanto ninguém resolve usar grandes arsenais nucleares contra um inimigo), corresponde a uma multiplicidade de crises, ainda mais sistêmicas que as da Era dos Dinossauros.

É por isso que os sedimentos do lago canadense estão marcados não apenas pela assinatura dos testes nucelares como também por indícios da chamada Grande Aceleração —o momento em que a civilização moderna passou a consumir quantidades cada vez mais exorbitantes de combustíveis fósseis e outros recursos naturais.

Esse processo também produziu coisas como poluentes orgânicos e partículas ligadas à combustão em escala industrial, as quais, à sua maneira, são tão improváveis e inconfundíveis quanto as variantes do elemento radioativo plutônio das bombas americanas e soviéticas.

A combinação dessas diferentes assinaturas é a verdadeira essência do que a ciência passou a compreender como o início do Antropoceno. E é por isso que o movimento para rebatizar o momento geológico que estamos atravessando é bem mais do que um exercício de relações públicas ou de propaganda ambientalista, como diriam os críticos da ideia.

Inserir a época da humanidade nos livros didáticos do futuro é uma maneira de reconhecer que estamos diante de uma crise múltipla diretamente ligada à transformação da nossa espécie em força geológica —algo que não havia acontecido antes com nenhuma outra espécie de mamífero, ou mesmo de vertebrado, ao longo de centenas de milhões de anos de existência de ambos os grupos.

A partir de uma única causa profunda —a nossa capacidade recém-adquirida de monopolizar as fontes de energia e matérias-primas da biosfera—, os chamados limites planetários estão sendo ultrapassados.

Ou seja, tudo indica que a nossa capacidade de consumir o que a Terra produz já supera, em quase todos os aspectos, a capacidade que a biosfera tem de se regenerar. Oficializar o Antropoceno é uma das maneiras de deixar clara, por meio de uma só palavra, a magnitude e os riscos desse processo.

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