Ucrânia acusa Rússia de ecocídio por morte de golfinhos

Investigadores já analisaram mais de 900 casos de animais mortos

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Marc Santora
Odessa (Ucrânia) | The New York Times

A vítima foi encontrada em um trecho de praia perto da cidade portuária de Odessa, no sul da Ucrânia, no início deste verão. A causa da morte é desconhecida.

Uma chuva leve caía sobre o campo aberto onde a autópsia seria realizada, observada por agentes da polícia, representantes da promotoria pública local e testemunhas civis.

A carcaça estendida na praia era de uma toninha-comum. As toninhas vêm encalhando em grande número nas praias do Mar Negro.

Pessoas com roupas de proteção em torno de uma mesa com um corpo de golfinho disposto nela, enrolado em um saco plástico
Cientistas se prepararam para fazer autópsia de golfinho, sob supervisão do zoólogo Pawel Goldin (à esq.), em Odessa, na Ucrânia - Laura Boushnak/The New York Times

"Golfinhos não são apenas animais simpáticos", disse Pawel Goldin, 44, doutor em zoologia especializado em populações de mamíferos marinhos no Centro Científico Ucraniano de Ecologia do Mar, falando antes da autópsia. "São animais fundamentais para o ecossistema marinho. Se os golfinhos estão em condição ruim, o ecossistema inteiro está."

E os golfinhos no mar Negro estão tendo problemas.

Autoridades ucranianas dizem que a situação dos golfinhos revela o custo muito pesado que a guerra da Rússia está cobrando da vida marinha e do ambiente de modo mais amplo. E isso é algo que elas querem documentar para levar a questão à Justiça.

Quatro atos específicos são reconhecidos como crimes internacionais: genocídio, crimes contra a humanidade, agressão e crimes de guerra. A Ucrânia que acrescentar um quinto, o ecocídio, e está montando seu argumento contra a Rússia. A autópsia da toninha fez parte desse esforço.

"Estamos traçando a estratégia para processar os culpados por crimes de guerra ambientais e ecocídio", disse Maksym Popov, assessor do Procurador-Geral da Ucrânia que trabalha especificamente com questões ambientais. "Esse crime ainda não é reconhecido como crime de guerra."

As pessoas frequentemente tratam toninhas e golfinhos como se fossem o mesmo animal, mas são animais diferentes, e ambos estão ameaçados.

Em um sinal da importância que a Ucrânia está atribuindo à questão, o presidente Volodimir Zelenski incluiu a "proteção imediata do meio ambiente" no plano de paz em dez pontos que a Ucrânia espera que sirva de base às negociações para encerrar a guerra.

O ministro ucraniano da Proteção Ambiental e dos Recursos Naturais, Ruslan Strilets, disse em entrevista que investigadores ambientais coletaram dados referentes a mais de 900 casos de golfinhos mortos. Os números incluem os animais encontrados nas praias da Ucrânia e também da Turquia e Bulgária, que também fazem fronteira com o mar Negro.

Segundo Strilets, dez corpos golfinhos foram encontrados apenas em uma semana de julho e estão sendo estudados para determinar a causa das mortes.

"Este é um novo desafio para tempos de guerra", ele disse. "Não podemos perder informação sobre crimes ambientais."

A destruição da barragem de Kakhovka, que fez trilhões de galões de água poluída descer pelo rio Dnieper e chegar até o mar Negro, foi o golpe mais grave ao ambiente em uma guerra que já era ecologicamente catastrófica. Mas, mesmo antes disso, golfinhos já estavam morrendo em ritmo alarmante.

Os navios de guerra russos que ameaçam a costa sul da Ucrânia no mar Negro fazem uso constante de sinais acústicos de sonar que, segundo cientistas, podem atrapalhar o senso de direção dos golfinhos, que utilizam seu próprio sonar natural para ecolocalização.

Explosões, lançamentos de foguetes e caças russos voando em baixa altitude aumentam ainda mais a cacofonia que está traumatizando os golfinhos, disse Goldin. Ele ressalvou, porém, que ainda é cedo para atribuir a mortandade de golfinhos a uma causa isolada.

Minas marítimas que se espalham nas águas costeiras representam obstáculos novos e letais. Poluentes de explosivos e vazamentos de combustíveis, ao lado de destroços de vários tipos ligados à guerra, prejudicaram grandes trechos da Reserva da Biosfera do Mar Negro —a maior área de proteção ambiental da Ucrânia, classificada como "zona úmida de importância internacional".

E os danos ambientais causados pelas consequências amplas da explosão da barragem ainda estão sendo estudados intensivamente.

Goldin disse que a água da enchente criada pela destruição da barragem contém metais pesados, pesticidas e nutrientes —em especial nitrogênio e fósforo—que haviam se acumulado nos sedimentos atrás da barragem. Esses nutrientes desencadearam a proliferação maciça de algas, que podem se tornar tóxicas.

Um grande estudo da população de cetáceos do mar Negro feito em 2019 concluiu que havia cerca de 200 mil toninhas, 120 mil golfinhos comuns e entre 20 mil e 40 mil golfinhos-roazes, disse Goldin.

Alguns ambientalistas especulam que mais de 50 mil golfinhos do mar Negro podem ter morrido apenas no primeiro ano da guerra, mas os cientistas que participam dos exames forenses são mais cautelosos.

Goldin disse que ainda não é possível estimar o número de golfinhos mortos em decorrência direta da guerra, e a Ucrânia está trabalhando com parceiros internacionais para chegar a um entendimento melhor do que está acontecendo.

De acordo com Strilets, a Ucrânia tem tido que criar novas metodologias para documentar os danos ao meio ambiente. O mar Negro é uma zona de batalha, grandes trechos da costa ucraniana estão sob ocupação russa, e muitas áreas são perigosas demais para ser visitadas, devido aos combates intensos.

Mas uma coisa é documentar um golfinho morto que encalhou na praia. Entender por que o animal morreu é uma questão muito mais complexa.

"O diagnóstico é o resultado de todos os passos dessa pesquisa", disse Goldin.

Após cada autópsia, a Ucrânia envia amostras a peritos das universidades de Pádua, na Itália, e Hannover, na Alemanha, para análises posteriores.

O trabalho levará tempo, segundo Goldin. E o verdadeiro número de animais mortos só será conhecido após a guerra, quando for possível realizar um levantamento em grande escala da vida marinha no mar Negro.

Mesmo assim, cada golfinho morto que os cientistas documentam e estudam oferece pistas importantes.

A toninha dissecada recentemente havia morrido algumas semanas antes, dias após a destruição da barragem. Devido à escassez de recursos na Ucrânia, a carcaça teve que ser congelada até que fosse possível realizar uma autópsia segundo os protocolos de uma investigação tanto científica quanto criminal.

"Este é um indivíduo muito pequeno", disse Goldin quando sua equipe colocou a toninha sobre uma mesa para descongelar. O odor forte era difícil de suportar quando eles dissecaram o animal, apesar de o trabalho ter sido realizado ao ar livre.

Depois de concluída a autópsia, Goldin disse que um fato surpreendente foi que o estômago da toninha estava cheio e que ela ingerira pelo menos cinco espécies de peixes recentemente.

"O fato de esse animal ter ingerido tanto alimento mostra que ele estava preparado para a vida", disse Goldin. "É intrigante e aumenta o mistério do porquê de sua morte."

Tradução de Clara Allain.

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