Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia Rússia

Explosão de represa cria nova fronteira na Guerra da Ucrânia

Retiradas ocorrem sob fogo, e AIEA vai inspecionar usina nuclear; combates seguem em Donetsk

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São Paulo

A explosão da represa de Nova Kakhovka, ocorrida na terça (6) no sul da Ucrânia, está criando, na prática, uma nova fronteira entre o país governado por Kiev e as áreas ocupadas pela Rússia desde a invasão.

As águas ainda estão subindo nos cerca de 100 km do rio Dnieper abaixo do ponto em que a barragem foi rompida, seja por uma explosão provocada pelos russos ou por um ataque ucraniano, a depender da versão. O auge da cheia deve ser nesta quarta (7), com a estabilização do quadro prevista em até dez dias.

Área inundada após a explosão da represa em Nova Kakhovka, na região ocupada pelos russos no sul da Ucrânia
Área inundada após a explosão da represa em Nova Kakhovka, na região ocupada pelos russos no sul da Ucrânia - Vladislav Smilianets/Reuters

Sem apontar culpados, é cristalino que os russos são os mais favorecidos taticamente, dado que aquele era um dos pontos mais expostos dos 1.000 km de frente de batalha, que pouco mudaram desde o fim de 2022, quando Moscou retirou-se da capital da região de Kherson e se encastelou do outro lado do rio.

A região fica a meros 80 km da anexada Crimeia, a joia da coroa do projeto de Vladimir Putin de criar a "Nova Rússia", território que nacionalistas consideram historicamente de Moscou, unindo o Donbass, o leste ucraniano, à península —e, na visão original, estendendo-se pela costa da Ucrânia até a Transdnístria, encrave pró-Kremlin na Moldova.

Se um ataque direto ali na contraofensiva iniciada no domingo (4) parecia difícil, por envolver a travessia do rio, agora ele é virtualmente impossível. O Kremlin afirma que os ucranianos fizeram o ataque para poder mover tropas para outros pontos da frente e que querem privar a Crimeia da água que vinha do reservatório da represa.

"Explodir a represa também mostra um desespero russo. Implica que Moscou não tem capacidade de reclamar o resto de Kherson [a margem ocidental do Dnieper]", diz a analista Ekaterina Zolotova, da consultoria americana Geopolitical Futures.

Já o conceituado analista militar Michal Kofman, do Centro de Análises Navais (EUA), relativizou a importância militar do evento em uma postagem no Twitter. Para ele, os ucranianos não tinham a região como alvo, necessariamente, e ainda podem tentar cortar a ligação por terra entre a Rússia e a Crimeia por outros pontos da frente.

Para Zolotova, o incidente "muda toda a geografia do conflito". Há meses os proponentes de uma solução negociada sugerem uma saída ao estilo Guerra da Coreia, com a criação de uma zona desmilitarizada como a que existe no paralelo 38 da península asiática desde 1953.

Kiev é contra, por congelar a perda territorial existente, e Moscou apenas observa. O plano de paz apresentado pela Indonésia na semana passada vai nessa direção, e há relatos cada vez mais consistentes de que os EUA estão pressionando a China a forçar seu aliado Putin a topar o arranjo. Resta saber o que fará o líder ucraniano, Volodimir Zelenski, cuja máquina militar depende do Ocidente.

A expressão "terra de ninguém" talvez seja sombriamente real para o que irá acontecer na região. O desastre ambiental se insinua gigantesco, com detritos de mineração e até o combustível que movia as comportas da barragem e abastecia sua usina hidrelétrica, finalizada em 1956, espalhando-se nas áreas inundadas.

De acordo com Kiev, 74% do sistema de irrigação de Kherson e 30% da província vizinha de Dnipropetrovsk estão inutilizados. Isso terá impacto, segundo estima Zolotova, na produção de frutas e vegetais do país, 80% da qual sai de lá. Além disso, deve ser afetado o fluxo de óleo de girassol da região, que abastecia 47% do mercado mundial antes da guerra —talvez 35% agora.

Enquanto as contas são feitas, equipes de resgate correm. Há cerca de 42 mil pessoas morando às margens ora inundadas do Dnieper. Cerca de 3.000, metade para cada lado, foram retiradas. Rússia e Ucrânia se acusam mutuamente de o trabalho ter sido feito com disparos de artilharia do campo rival.

Nova Kakhovka, epicentro da crise, está sob as águas, e a prefeitura diz que ao menos cem moradores seguem ilhados. Animais domésticos e de criação vagam por áreas alagadas. A condenação internacional e os pedidos de investigação sobre o que aconteceu continuaram nesta quarta, com o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, que é próximo de Putin e apoia Zelenski, sugerindo apuração imparcial do episódio.

O líder turco conversou com Putin por telefone nesta quarta e ouviu do russo que o incidente é uma "tragédia humanitária e ambiental". O Kremlin também se queixou do que chamou de sabotagem contra o maior duto de fertilizantes do mundo, que liga a Rússia a um porto ucraniano no mar Negro. Uma seção dele foi explodida em Kharkiv, no norte da Ucrânia, e, embora ele estivesse inoperante, sua reativação fazia parte do acordo de exportação de grãos entre os rivais mediado pela ONU e pela Turquia.

Drama nuclear

Cerca de 120 km acima da represa, na usina nuclear de Zaporíjia, um drama em câmera lenta se desenrola. As águas do reservatório serviam também para abastecer o sistema de resfriamento dos seis reatores da maior planta do tipo na Europa, cinco dos quais já desligados desde que os russos a tomaram, em 2022.

A água na região já baixou cerca de três metros, e estava na manhã desta quarta-feira em 16,4 m no reservatório, com um fluxo ainda de vazão de cerca de 5 centímetros por hora, segundo a administração da usina. Se chegar a 12,7 metros, fica impossível a captação de água para os reatores.

Ainda não está claro quando a situação se estabilizará, mas por ora não há risco de acidente —sem resfriamento, pode haver uma fusão do núcleo do reator e uma explosão, ao estilo da também ucraniana Tchernóbil, em 1986. Há ainda reservatórios de água totalmente cheios, o que tranquiliza as autoridades.

Seja como for, na semana que vem a usina será inspecionada pelo diretor-geral da Agência Internacional de Energia Atômica, Rafael Grossi. A situação, diz ele, está sob controle, mas é naturalmente preocupante.

No restante da frente de batalha, os combates continuam. Os russos outra vez disseram ter frustrado um ataque na região de Bakhmut, a estratégica cidade tomada em maio em Donetsk. Kiev não comentou.

Até aqui, a contraofensiva ucraniana segue em um estágio inicial, com incursões probatórias, mas bastante elaboradas, com o emprego combinado de infantaria, forças mecanizadas e artilharia. Tudo indica que as forças de Zelenski estão buscando pontos frágeis na defesa de Putin antes de uma ação mais maciça, mas a explosão da represa coloca um ponto de interrogação sobre os planos.

No discurso, a dissimulação natural segue. Nesta quarta, o secretário do Conselho de Defesa e Segurança Nacional da Ucrânia, Oleksii Danilov, disse à agência de notícias Reuters que a contraofensiva não começou e que "ficará claro quando ela começar".

Na Rússia, houve novo bombardeio por parte da Ucrânia com sistemas de mísseis Grad contra cidades de Belgorodo, junto à fronteira. Na região de Kursk, um pouco mais ao norte, duas áreas ficaram sem energia devido ao ataque com drones ucranianos contra centrais de distribuição elétrica, algo que vem se estabelecendo como rotina no sul russo.

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