Aceleração do aquecimento global divide cientistas do clima

Dúvidas sobre o que está acontecendo com o planeta colocam em campos opostos dois pesos-pesados da pesquisa na área

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São Carlos (SP)

As temperaturas anormalmente altas que assolaram o mundo em 2023, além de todos os seus efeitos nocivos sobre os seres humanos e os ecossistemas, também provocaram certa celeuma na comunidade dos cientistas que estudam a crise do clima.

Será que o calor descontrolado deste ano mostra que os efeitos das mudanças climáticas mudaram de patamar de vez? Ou o mais correto é enxergá-los como uma extensão do que já estava previsto, turbinada por ciclos naturais?

"É um certo racha dentro da comunidade, e a gente só vai poder ter certeza do que está ocorrendo daqui a algum tempo, ou com mais estudos", resume a geógrafa Karina Bruno Lima, doutoranda em climatologia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Todos, é claro, concordam que a ação humana é a chave para explicar a deterioração do sistema climático.

As dúvidas sobre o que está acontecendo com o clima colocam em campos opostos dois pesos-pesados da pesquisa na área, os americanos James Hansen, do Instituto da Terra da Universidade Columbia, e Michael Mann, da Universidade da Pensilvânia.

Montanhas de gelo no mar
Derretimento de gelo no fiorde Scoresby, na Groenlândia, em agosto - Olivier Morin - 12.ago.2023/AFP

"São duas posições mais cristalizadas", afirma Alexandre Araújo Costa, climatologista da Universidade Estadual do Ceará. Ambos, é claro, concordam que a ação humana é a chave para explicar o deterioramento do sistema climático.

"O Hansen tem apontado para o risco dos feedbacks, das retroalimentações que podem tornar a situação muito mais perigosa do que imaginávamos até pouco tempo atrás. Já o Mann diz: olha, a coisa já é ruim o suficiente sem pensar nisso. Não é que ele negue a gravidade do que está acontecendo, é só que ele enxerga isso como uma bola cantada há muito tempo."

Tanto Lima quanto Costa apontam que, no rol dos possíveis responsáveis pela aparente aceleração da crise climática nos últimos tempos, deve haver um papel de destaque para os chamados aerossóis. Grosso modo, o termo designa pequenas partículas em suspensão na atmosfera cujo efeito sobre o clima tende a ser multifacetado.

Diversas atividades humanas, como a queima de biomassa (incinerando uma floresta, por exemplo), o uso de combustíveis como o diesel em veículos ou certos tipos de indústria podem lançar grandes quantidades e formas de aerossóis no ar.

Alguns deles podem absorver radiação solar e esquentar ainda mais a atmosfera. Outros, ao interferir nos detalhes da formação das nuvens, ajudam a refletir a luz do sol e acabam tendo um efeito resfriador.

Ironicamente, tudo indica que indústrias e combustíveis mais "sujos", largamente empregados no século 20, podem ter segurado parte dos efeitos do aquecimento global durante algumas décadas graças aos aerossóis que emitiam, evitando um aumento extra de até 0,4°C na temperatura do planeta.

A paulatina substituição das tecnologias geradoras de aerossóis por alternativas mais limpas tem diminuído a poluição atmosférica, o que é uma boa notícia para os pulmões da população, mas pode também explicar o "efeito rebote" de aumento de temperatura recentemente.

"É uma crise de abstinência", compara Araújo Costa. "Como eu costumo dizer para os meus alunos, vai piorar antes de melhorar, até porque nós nem começamos para valer o processo de descarbonização."

Outros fatores também podem estar favorecendo um aumento da temperatura maior do que o esperado. Um deles tem a ver com mudanças no albedo, que corresponde à capacidade da superfície da Terra de refletir ou absorver a radiação solar. Quando o Ártico costumava passar a maior parte do tempo coberto de neve e gelo, por exemplo, a brancura das regiões polares refletia a luz do sol.

O degelo, porém, expondo cada vez mais, e por mais tempo, as áreas de oceano dessas regiões, faz com que a absorção da luz solar —e, portanto, o calor— aumentem, já que a água do mar é muito mais escura que a neve.

Por outro lado, o fenômeno El Niño, poderoso neste ano, pode ser um elemento de variabilidade natural do sistema climático que injetou uma dose extra de drama numa situação que já não era nem um pouco favorável.

"Particularmente, acho que existem evidências crescentes [de uma aceleração]", pondera Karina Lima. Ela cita um estudo liderado por Zeke Hausfather, da instituição não governamental Berkeley Earth, em que modelos computacionais que simulam a evolução do clima mostraram um aquecimento 40% mais rápido no intervalo 2015-2030 do que no período entre 1970 e 2014.

"Vejo um pouco de razão em ambos os lados", diz Araújo Costa. "Sim, 2023 foi algo extraordinário, e teremos de ver como será 2024. Um ponto em que o Hansen tem razão tem a ver diretamente conosco: se todos esses botões continuarem apertados, provocando secas sucessivas na amazônia, temos o risco de perdê-la mesmo sem derrubar mais uma só árvore."

Politicamente, lembra o pesquisador, isso deveria fazer cair a ficha de que é preciso uma transição "rápida e justa" de abandono dos combustíveis fósseis, em vez dos sinais confusos emitidos pelo governo brasileiro em favor de investimentos continuados em petróleo.

Outro ponto-chave, diz Lima, é que não se devem subestimar os impactos associados a eventos climáticos extremos, mesmo que o aquecimento médio não mude de patamar tão cedo. "Eles não são uma ameaça distante, todos estamos suscetíveis a eles, e tudo pode mudar muito rápido."

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