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Na era do cancelamento, homenagens a cientistas preconceituosos são revistas

Nomes de pesquisadores batizam de competições a prédios universitários e podem ser retirados

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São Carlos (SP)

A forte influência do racismo e da ideia de supremacia branca sobre alguns dos mais importantes cientistas da história está levando a atual geração de pesquisadores a rever honrarias que homenageiam seus antecessores preconceituosos, a exemplo do que tem acontecido com figuras da política, da filosofia e de outras áreas.

Há, por exemplo, uma petição para alterar o nome dos Jogos Lineanos, competição anual de estudantes organizada pela Sociedade Entomológica da América (EUA). Hoje, a disputa homenageia o sueco Carl von Linné (1707-1778), criador do sistema usado para classificar os seres vivos até hoje, cuja obra dividiu os seres humanos numa hierarquia de raças com os europeus no topo.

No Reino Unido, a Universidade de Cambridge decidiu remover um vitral dedicado à memória de Ronald Fisher (1890-1962), um dos fundadores da genética moderna— e também um defensor da eugenia, a ideia de que seria desejável controlar a reprodução humana com vistas a um suposto “melhoramento da raça”.

E o University College de Londres pode tirar de dois de seus prédios os nomes de outros defensores da eugenia, o polímata Francis Galton (1822-1911), primo de Darwin e responsável por cunhar o termo, e o matemático Karl Pearson (1857-1936), um dos pais da estatística moderna.

Embora os alvos desse revisionismo científico tenham, em geral, morrido há 50 anos ou mais, visões parecidas ainda estão presentes nas falas de gente como o ganhador do Nobel James Watson, 92. E a influência da eugenia e do darwinismo social continua viva em grupos de extrema-direita e neonazistas, diz a antropóloga Adriana Abreu Dias, cujo doutorado na Unicamp analisou o comportamento dos partidários dessas ideologias na internet.

“São grupos que enxergam o homem branco heterossexual como o único modelo verdadeiro da humanidade e que desprezam todos os demais seres humanos. Mesmo as mulheres, para eles, valem apenas como algo que serve para gerar indivíduos considerados racialmente puros”, afirma ela.

A discussão atual sobre rebatizar prédios, gincanas e revistas científicas que hoje homenageiam racistas repete, em certa medida, o que aconteceu após o fim da Segunda Guerra Mundial.

“A associação que existia entre nazismo e eugenia fez vários periódicos que tinham ‘eugenia’ no nome a modificar isso”, conta Charbel El-Hani, coordenador do Laboratório de Ensino, Filosofia e História da Biologia na UFBA (Universidade Federal da Bahia).

Com efeito, o impacto do chamado “racismo científico” do século 19 sobre as origens da biologia moderna não pode ser negligenciado. Grande parte dessa influência se manifestou na área hoje conhecida como genética de populações e deriva das tentativas de compreender a variação hereditária entre indivíduos – seja entre animais e plantas, seja entre seres humanos.

Se essa variabilidade podia ser medida, e se era possível saber até que ponto ela estava “no sangue”, então seria possível, em princípio, conduzir cruzamentos para produzir seres humanos mais inteligentes ou mais saudáveis, diziam os eugenistas.

“Uma disciplina que hoje é tão importante foi fundada por eugenistas, sua visão de mundo foi moldada por visões raciais e de melhoria, e é inevitável que isso tenha interagido com a forma como o conhecimento é produzido”, analisa Diogo Meyer, professor do Instituto de Biociências da USP.

Importado da Europa, esse ideário também influenciou as primeiras gerações de antropólogos, médicos e biólogos brasileiros, das décadas finais do Império até o começo da República, lembra Dias. Em parte, o impulso à imigração europeia e à ideia de branqueamento da população veio de pesquisadores como o zoólogo Hermann von Ihering, fundador do Museu Paulista, que chegou a escrever artigos defendendo o extermínio dos indígenas caingangues no interior de São Paulo.

“Até hoje o Instituto Médico Legal da Bahia leva o nome de Nina Rodrigues, uma dessas figuras fundadoras do racismo supostamente científico no Brasil”, diz o físico Alan Alves Brito, baiano de nascimento e diretor do Observatório Astronômico da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).

“É uma discussão que também precisa acontecer no Brasil, não apenas por causa da necessidade de repensar esses nomes do passado como também para reconhecer as contribuições de cientistas e intelectuais negros, que muitas vezes foram apagadas. Por enquanto, não fizemos nosso dever de casa”, afirma Brito, que é negro e relata ter tido dificuldades para fomentar essas discussões entre seus pares, embora a abertura para o tema tenha melhorado nos últimos anos.

“É preciso ter em mente que a ciência é uma construção coletiva, e não essa coisa pura, ingênua, ateórica e ahistórica que está na cabeça de muita gente. A ciência não existe fora da sociedade. Cientistas são pessoas, e pessoas muitas vezes são preconceituosas”, lembra o astrônomo.

Para Meyer, elementos da cultura científica como prêmios e nomes de prédios estão associados à credibilidade da ciência. Por isso, premiar alguém com uma láurea que leva o nome de um eugenista traz uma carga indesejável e pode minar a confiança da sociedade. Ao mesmo tempo, também há problemas em passar a impressão de que a reputação de cientistas oscila ao sabor de guerras culturais.

“Acho que não há nada mais didático do que ver que um cientista brilhante pode ter ideias imensamente equivocadas e danosas para a sociedade. Pensando assim, o nome de um prêmio é a ponta do iceberg. O mais importante é entender que há figuras como o Fisher, complexas, com ideias geniais convivendo com pensamento eugênico.”​

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