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Carta falsificada de Galileu é descoberta graças a marca d'água e 'sentido aranha'

Historiador desvenda fraude em documento supostamente escrito pelo astrônomo italiano

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Michael Blanding
The New York Times

Galileu Galilei estava olhando através de um novo telescópio em 1610 quando notou algo estranho: vários objetos brilhantes faiscando em volta do planeta Júpiter e que pareciam mudar de posição todas as noites. Sua descoberta das luas que orbitam Júpiter provocou um grande rombo na ideia, defendida amplamente desde a antiguidade, de que tudo no universo girava em torno da Terra.

Condenada pela Igreja Católica, a descoberta ajudou a comprovar a teoria de um sistema solar centrado no Sol.

A Biblioteca da Universidade do Michigan guarda há décadas com grande apreço um manuscrito relacionado a essa descoberta, descrevendo-o como "um dos grandes tesouros" de seu acervo. Na parte superior está o rascunho de uma carta assinada por Galileu descrevendo o novo telescópio, e na parte inferior há desenhos assinalando as posições das luas em torno de Júpiter. A biblioteca descreve o manuscrito como "os primeiros dados observacionais que mostraram objetos orbitando um corpo que não fosse a Terra".

A carta que era creditada ao astrônomo Galileu Galilei é, na verdade, uma falsificação; ela está exposta na biblioteca da Universidade de Michigan (EUA) - Biblioteca da Universidade de Michigan/via NYT

Ou, pelo menos, é o que seria se fosse autêntico. Depois de o historiador Nick Wilding, da Georgia State University, ter descoberto evidências que sugerem que o manuscrito seria falso, a biblioteca investigou e determinou que ele tinha razão. Na quarta-feira a universidade anunciou ter concluído que seu prezado manuscrito "é na realidade uma falsificação feita no século 20".

"Foi arrasador quando primeiro descobrimos que nosso manuscrito de Galileu na realidade não é de Galileu", disse em entrevista a diretora interina das bibliotecas da universidade, Donna L. Hayward. Mas, como a finalidade de qualquer biblioteca é ampliar o conhecimento, ela disse, a universidade decidiu ser franca sobre suas conclusões e anunciar a falsificação publicamente. "Varrer o assunto para debaixo do tapete seria contrariar aquilo que defendemos", explicou.

Wilding, que está escrevendo uma biografia de Galileu, já descobriu obras falsificadas de Galileu antes: ele encontrou evidências previamente que uma cópia do tratado de Galileu de 1610 "Sidereus Nuncius" ("Mensageiro Sideral"), com várias pinturas em aquarela, era falsificada.

Ele começou a desconfiar do manuscrito do Michigan em maio, quando examinou uma imagem online. Algumas das formas das letras e das palavras empregadas lhe pareceram estranhas, e, apesar de a parte superior e inferior terem supostamente sido escritas com um intervalo de meses, a tinta parecia surpreendentemente semelhante.

"É uma coisa que salta aos olhos, é estranha", disse Wilding. "São supostamente dois documentos diferentes que por acaso estão em uma mesma folha de papel. Por que tudo é exatamente do mesmo tom de marrom?"

Pintura de 1873 mostra Galileu Galilei explicando sua pesquisa sobre a Terra a um padre na Universidade de Pádua, na Itália - The Art Archive/National Palace Mexico City/Gianni Dagli Orti

Wilding dá um curso de verão sobre falsificação na Escola de Livros Raros da Universidade da Virginia. Ele começou a pesquisar o documento da Universidade do Michigan e descobriu que não há registro dele em arquivos italianos. Ele apareceu para leilão primeiramente em 1934, quando foi comprado por um empresário de Detroit, sendo doado à universidade em 1938, após a morte dele. Em maio Wilding entrou em contato com a biblioteca por email para pedir mais informações sobre a origem do manuscrito e solicitar uma imagem de sua marca d’água —uma insígnia visível quando o papel é visto contra a luz e que pode indicar onde e quando o papel foi fabricado.

Pablo Alvarez, curador do Centro de Pesquisas de Coleções Especiais da biblioteca, recordou como ficou apreensivo quando viu o nome de Wilding no email, ciente da reputação de Wilding por desmascarar fraudes. Ele buscou o documento e fotografou sua marca d’água, um círculo com um trevo de três folhas e o monograma "AS/BMO".

As informações de proveniência levantaram alertas: o catálogo do leilão dizia que o documento havia sido autenticado pelo cardeal Pietro Maffi, arcebispo de Pisa, na Itália, que morreu em 1931 e que o teria comparado com dois documentos autografados de Galileu em sua coleção. Wilding descobriu que esses dois documentos haviam sido dados ao cardeal por Tobia Nicotra, notório falsificador milanês do século 20.

"Assim que ouvi a palavra ‘Nicotra’, meu ‘sentido aranha’ entrou em alerta", disse Wilding.

Alvarez levou o documento ao laboratório de conservação da Universidade do Michigan, onde Amy Crist, conservadora de livros e papéis da biblioteca, opinou que a tinta e o papel eram condizentes com o período —oferecendo a Alvarez a leve esperança de que o documento fosse autêntico.

O planeta Júpiter e sua lua Europa, em imagem feita pelo telescópio espacial James Webb este ano - Nasa/ESA/CSA/B. Holler e J. Stansberry

A busca feita por Wilding pelo monograma trouxe à tona outro documento de Galileu na Morgan Library & Museum, em Nova York, que tinha uma marca d’água ligeiramente diferente, com o mesmo monograma. Esse documento, uma carta de 1607 a um destinatário desconhecido, correspondia quase exatamente a uma carta que Wilding descobrira em arquivos italianos —fato que despertou suas desconfianças. Ele levou suas suspeitas também ao museu Morgan.

No início de junho, Wilding havia determinado que "BMO" era usado como abreviação de Bergamo, cidade italiana, e encontrado uma obra de referência intitulada "As Fábricas de Papel Antigas do Ex-Império Austro-Húngaro e Suas Marcas D’Água", com informações sobre o papel fabricado na cidade.

As bibliotecas de Michigan e Morgan tinham cópias do livro, ele descobriu. Wilding entrou em contato com Alvarez e Philip S. Palmer, curador chefe do departamento de manuscritos literários e históricos da Biblioteca Morgan, dizendo a eles que a resposta estava ali.

Correndo para examinar o livro, Alvarez descobriu a marca d’água da carta da Biblioteca Morgan, que correspondia a documentos de 1790 no livro de referência. Ele não encontrou o tipo exato de marca d’água encontrado no manuscrito da biblioteca de Michigan, mas nenhum outro documento com marca d’água "AS/BMO" apareceu antes de 1770, tornando altamente improvável que Galileu poderia ter usado o papel mais de 150 anos antes.

Alvarez ficou decepcionado. "Xeque-mate", pensou.

A falsificação é realmente boa. A descoberta dela de certa forma torna este artefato ainda mais fascinante. Varrer o assunto para debaixo do tapete seria contrariar aquilo que defendemos

Donna L. Hayward

Diretora interina das bibliotecas da universidade Michigan

Apesar de o documento do Michigan ter sido autenticado por estudiosos de Galileu no passado, ele se sentiu responsável por não ter reconhecido a fraude antes. "A base da ciência é a observação", ele disse, e lamentou que não "fizera realmente o que Galileu fez de fato".

Entrevistado, Palmer, da Biblioteca Morgan, disse que aceitou a conclusão de Wilding de que a carta de 1607 não é um documento legítimo de Galileu e que a biblioteca vai atualizar seu catálogo para destacar que ela foi "anteriormente atribuída a Galileu".

A revelação das falsificações não modifica fundamentalmente a descoberta de Galileu, que é amplamente documentada. Mas elimina o que parecia ser um intrigante primeiro rascunho da descoberta, que parecia mostrar o cientista questionando suas observações em tempo real.

Alguns estudiosos tinham dificuldade em entender exatamente o que Galileu teria desenhado no documento do Michigan; agora que o manuscrito foi declarado falso, parece que qualquer mistério pode ser derivado da confusão do falsificador, não do cientista. "O que nos resta é um relato mais simples, mais direto", disse Wilding. "Não há mais a distração de ter que explicar esse argumento que não se encaixava totalmente."

Agora a equipe da biblioteca do Michigan está discutindo maneiras de usar o objeto para estudar os métodos e as motivações das falsificações. O manuscrito talvez se torne o artefato central de um futuro simpósio ou exposição sobre o tema.

"A falsificação é realmente boa", disse Hayward. "A descoberta dela de certa forma torna este artefato ainda mais fascinante."

Em sua investigação sobre Nicotra, Wilding descobriu que o italiano teria começado a vender cartas e manuscritos musicais falsificados para poder sustentar suas sete amantes. Uma investigação sobre um manuscrito dúbio de Mozart levou a polícia a invadir o apartamento de Nicotra em Milão em 1934 e ali encontrar uma verdadeira "fábrica de falsificações", com guardas arrancadas de livros antigos e falsificações de textos de Lorenzo de Médici, Cristóvão Colombo e outras figuras históricas.

Estudiosos avisam que é provável que haja mais documentos falsos em acervos, ainda a ser descobertos.

"É certo que há mais falsificações aí fora", disse Hannah Marcus, professora no departamento de história da ciência da Universidade Harvard, que está escrevendo com Paula Findlen, da Universidade Stanford, um livro sobre a correspondência de Galileu. Ela elogiou Wilding por seu trabalho de exposição de falsificações. "Nem tudo precisa ser lido com desconfiança", ela disse, "mas tudo deve ser lido com olhar cuidadoso."

Tradução de Clara Allain

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