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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

De calça curta

Não tem a ver com a maturidade, e sim com o termômetro

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A aniversariante se levantou da mesa e me recebeu assim, diante dos 20 convidados: "Nossa, Antonio! Faz séculos que eu não te vejo de calça!". Depois de segundos infinitos em que todos me imaginaram nu com a dona da casa, ela remendou: "Não! Não é que eu tenha visto o Antonio pelado, é que ele tá sempre de bermuda!". Devidamente vestido na imaginação dos comensais, pude me sentar à mesa e deu-se início a um animado debate sobre esta minha inexplicável excentricidade: a mania de, num país tropical, numa cidade em que os termômetros não raro passam dos 30 graus, num século de galopante aquecimento global, andar por aí com as pernas, vejam só, de fora.

Alego, em minha defesa: foi a educação que eu tive. No que se refere ao vestuário, sigo as diretrizes recebidas do meu pai e que sempre me pareceram bastante lógicas: "fresquinho no verão, quentinho no inverno". Entendo que a máxima, se tomada à risca e não submetida a nenhum outro critério, pode levar a resultados tidos como esteticamente, digamos, diferenciados. Meu pai não vê nenhum inconveniente em, por exemplo, abastecer seu guarda-roupas num Graal da Dutra —"Olha esse conjunto de moletom! R$ 29,99! Forrado!"— e foi uma luta para mim, minha irmã e meu irmão o convencermos, anos atrás, de que não eram alpargatas o que ele vinha usando durante meses, na rua, mas pantufas. (No fim, conseguimos convencê-lo de que eram pantufas, mas não a parar de usá-las).

Modéstia à parte, acho que evoluí um pouquinho em relação ao legado paterno. Minhas diretrizes são "fresquinho no verão, quentinho no inverno —e de preferência não muito zoado". Infelizmente, como venho percebendo, aos olhos do brasileiro bermuda = bagunça. Não consigo compreender de que maneira suar nas coxas pode tornar uma pessoa mais digna ou, dito de outro modo, como refrescar as panturrilhas pode deixar alguém mais infantil, mas é assim que as coisas são. 

Até mais ou menos os 30 anos usar bermuda não era problema, mas dali em diante começaram a me ver como uma espécie de Sérgio Mallandro, um cara que se recusa a amadurecer. Tento me defender afirmando que não tem a ver com a maturidade e sim com o termômetro, mas não adianta. Percebo, pelo olhar dos outros, que basta ver minhas pernas para me enxergarem de boné com hélice, fazendo "Glu-glu!". 

Sei que o Brasil tem questões mais candentes do que a candência das minhas canelas: neste domingo é provável que haja gente na rua pedindo o fechamento do Congresso, do STF, golpe militar, enfim, "Mais subdesenvolvimento!". Acredito, contudo, que meu assunto não seja inteiramente supérfluo, pois o repúdio à bermuda me parece parte deste subdesenvolvimento.

Quinhentos e dezenove anos depois da chegada dos primeiros europeus, ainda seguimos uns deserdados nos trópicos, suando para copiar o padrão estético da Europa. Copiamos, porém, só a embalagem dos países desenvolvidos: importamos as roupas do clima temperado, não a temperança de suas instituições. Os mesmos que constroem lojas com fachadas imitando a Casa Branca e pequenas Estátuas da Liberdade plantadas no estacionamento conclamam a população a sair às ruas contra a tradição que vai de Benjamin Franklin a Alexandria Ocasio-Cortez. 

Se quisermos, como cantou Caetano Veloso, há décadas, "Equacionar as pressões do PT, da UDR/ E fazer dessa vergonha/ Uma nação", temos um caminho longo e árduo a percorrer. Acho que seria um pequeno avanço se, ao menos, o percorrêssemos de bermuda.

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