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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Tonico com dedo

Nasci com um amor não correspondido pela música

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No geral, como Mercedes Sosa, sou grato à vida, "que me ha dado tanto", mas tem um porém. Nasci com um amor não correspondido pela música. Sofro silenciosamente essa maldição, como um eunuco num harém.

Estudei bateria na adolescência. Aprendi a tocar bem o suficiente para entender que tocava mal. Entre os quinze e os vinte, tive cabelo comprido e algumas bandas, mas sabia pelo olhar condescendente dos meus colegas que só me aceitavam ali por serem amigos. Depois de virar adulto, admiti minha incompetência e abandonei as ambições ringo-stáricas.

Como sabia Freud, no entanto, tudo o que é recalcado volta, alguma hora. No meu caso, essa hora costuma ser depois da meia-noite, após algumas cervejas. Eu sei, conscientemente, que não posso misturar álcool com percussão, mas é incontrolável. Quando vejo, já peguei um Tupperware na cozinha da festa, já me apoderei de um tamborim esquecido sobre um banquinho numa roda de samba. O que acontece a partir daí é triste —para mim— e trágico —pro resto da humanidade.

Acho que não estou sozinho nessa. É um problema do nosso povo. Todo brasileiro acha que sabe falar espanhol, fazer churrasco e batucar. Modéstia à parte, meu espanhol e meu churrasco são ótimos. En la percusión, sin embargo, no soy ni jamás seré un Naná Basconcechos, un Carlito Brown.

Existem leis, acredite, para proteger o mundo de pessoas como eu. Minha irmã foi uma vez numa roda de samba no sítio do Zeca Pagodinho, em Xerém. Pregada a uma parede, bem visível a todos que chegam, uma folha de caderno traz escritas com esferográfica as onze regras da casa. Regra número 1: "Convidado não convida". Tá certíssimo. Se você é o Zeca Pagodinho, penetra deve surgir no seu quintal que nem aleluia na primavera. É a regra número dois, contudo, que calou fundo em mim: "É proibido tocar triângulo".

O Zeca Pagodinho não tem a menor ideia da minha existência nem dos meus problemas etílico-percussivos, mas escreveu aquilo ali pra mim, eu sei. Nas mãos de um mestre, o triângulo é uma bateria. Nas mãos de um ébrio inapto, é uma arma de destruição em massa. Seus agudos tin-tin-tirilin-tin-tim penetram os tímpanos como bombas de fragmentação. As bombas de fragmentação são proibidas pelas Nações Unidas. O triângulo é proibido pelo Zeca Pagodinho.

Nas noites escuras em que, não podendo bater num pandeiro, me bate a melancolia, tento pensar, como consolo: pelo menos eu sei que sou ruim. Maldição maior é a do cara que não sabe fazer um negócio, não sabe que não sabe –e faz. Acontece com pessoas muito famosas. Ganham atenção demais, mimos demais, começam a se criticar de menos, aí se metem, por exemplo, a pintar. Repara na quantidade de famoso que pinta. O Silvester Stalone pinta. O George W. Bush pinta. O Gugu Liberato pintava. Ou melhor, fazia desenhos colando rolhas.

Reclamo de barriga cheia, eu sei. Devo é ser grato –e sou. "Gracias a la vida que me ha dado tanto/ Me dio el corazón que/ agita su marco/ Cuando miro el fruto del cerebro humano/ Cuando miro el bueno tan lejos del malo/ Cuando miro el fondo de tus ojos claros". Tudo isso é lindo, Mercedes Sosa. Mas se aparecesse agora um diabinho e me oferecesse o talento para a percussão em troca de um mindinho, eu não pensava duas vezes.

Tonico Sem Dedo seria recebido de braços abertos em todas as rodas de samba do Brasil e na parede do sítio, em Xerém, Zeca Pagodinho faria com Bic uma emenda constitucional: "Convidado não convida –com exceção do Tonico Sem Dedo: ele não é convidado, é de casa e pode até tocar triângulo."

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