Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Gustavo Alonso
Descrição de chapéu Semana de 1922

Cornélio Pires, contra Mário de Andrade, vendia cultura caipira no rádio

Resgatar o lugar do primeiro produtor da música sertaneja na história cultural é rever nosso pensamento sobre o Brasil

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No texto da semana passada, defendi a ideia de que o jornalista Cornélio Pires deveria ser visto como um dos herdeiros artísticos da Semana de 22. Mas não expliquei por que ele não tem esse reconhecimento.

O tieteense Cornélio, jornalista e folclorista nascido em 1884 na cidade do interior paulista, foi o inventor da música caipira moderna. Foi através das duplas arregimentadas por ele que foram gravados os primeiros discos desse gênero musical em 1929. Cornélio lançou mais de cem músicas de temática caipira.

Além de produtor musical, ele era escritor e contador de histórias. Foram 23 livros publicados desde 1910 até sua morte, em 1958. Em vários dos seus discos, além de músicas, eram contadas histórias que coletava pelos interiores. O tieteense foi um mediador entre a cultura letrada da cidade cosmopolita e os sertões interioranos.

Retrato do escritor, jornalista e produtor musical caipira Cornélio Pires - Reprodução

Cornélio, assim como vários integrantes da Semana de 22, buscou trazer à tona um Brasil popular, escondido nos interiores, até então ignorado pela intelectualidade da República Velha. No entanto, Cornélio nunca foi muito aceito na memória daquela semana histórica. Em parte isso se explica, pois Mário de Andrade, o mais celebrado e influente nome da Semana de 22, tinha uma visão distinta acerca da cultura popular.

Cornélio e Mário divergiam em relação à utilização do folclore e da música popular brasileira. Mário pensava a cultura popular como um repositório artístico intocado, que, se abraçado pelo mercado, perigava submeter-se aos ditames urbano-capitalistas, deturpando-se. Cornélio, por sua vez, era um promotor dessa mercantilização da música interiorana.

Em geral imperava nas considerações de Mário sobre a música do seu tempo um certo amargor. Em seus tempos de pesquisador nos anos 1930, Mário conviveu de perto com a ascensão do rádio como elemento difusor da música no Brasil. E o principal produto cultural do rádio na época era o samba. O samba era urbano, produzido e lançado por gravadoras desde 1917, quando foi gravado o clássico "Pelo Telefone", de Donga. Embebido nos marcos do romantismo alemão, que também seria a base de críticos da indústria cultural alguns anos na frente, Mário ignorou esse gênero musical por dois motivos.

Primeiro porque o samba teria sido impulsionado pelo rádio, não pelo povo, e sua hegemonia seria portanto deletéria para a cultura nacional. A hegemonia do samba e sua nacionalização apagava diversas matrizes e manifestações locais, que seriam afogadas pelo novo meio de comunicação.

Segundo porque Mário estava mais interessado nas matrizes culturais interioranas do que nas urbanas. Era nos interiores que o paulistano via o berço do Brasil, não nas cidades como São Paulo, onde nasceu e cresceu, terra da crescente industrialização e urbanização. Para Mário, era ali na cidade grande que migrantes de origem camponesa perdiam sua identidade cultural embebidos na então nascente cultura de massa.

No livro "Aspectos do Folclore no Brasil", Mário demarcou sua distinção em relação ao trabalho de pesquisadores como Cornélio: "O folclore científico sofre no Brasil a concorrência impudica do amadorismo, escandalosamente protegido pelas casas editoras e o aplauso do público. Um exemplo basta para demonstrar esta confusão: é geral entre os cantores improvisados de rádio, disco e mesmo concerto, se intitularem 'folcloristas' só porque usam e abusam da canção popular, consertando-lhes os textos, modificando-lhes as melodias em proveito de 'maior facilidade vocal' como já me foi dito, deformando-lhes por completo a instrumentação e a harmonização. [...] Na verdade este ‘folclore’ que conta em livros e revistas ou canta no rádio e no disco as anedotas, os costumes curiosos, as superstições pueris, as músicas e os poemas tradicionais do povo mais se assemelha a um processo de superiorização social das classes burguesas".

Cornélio, em tese, seria um aliado de Mário, pois também era um folclorista, e tinha interesse sobretudo nas matrizes rurais dos povos interioranos. Mas, diferentemente do paulistano, o tieteense topava negociar essa identidade caipira com os meios de comunicação de sua época, e os via com certo entusiasmo.

Como apontaram Luís Augusto Fischer e Ruy Castro em recentes textos publicados na Folha sobre a Semana de 1922, a história desse movimento tem como um dos seus principais eixos as trajetórias e personalidades de Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Fischer escreveu: "Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida e Tácito de Almeida foram, por motivos variados, sendo varridos para baixo do tapete". Figuras sui generis, como o integralista Plínio Salgado, integrante de primeira hora da Semana de 22, foi apagado de muitas narrativas. Assim, gradualmente passou a vigorar uma visão de cultura popular marioandradiana.

É claro que o pensamento de Mário não se reduz ao de um folclorista ingênuo, já que o paulistano defendia, como lembrou José Miguel Wisnik em recente texto, que a cultura popular não deveria parar no tempo. Caberia "o direito permanente à pesquisa estética", a "atualização da inteligência artística" na apropriação da cultura de matriz rural. A questão é que vigorava em Mário, e sobretudo nos seus entusiastas acadêmicos, um certo ranço contra qualquer mistura com o mercado. Diante das especulações antropofágicas de Mário, Cornélio era um engasgue na sua garganta.

Apesar dos interesses comuns, Cornélio e Mário nunca travaram diálogo consistente. Era como se fossem de mundos distintos, planetas diferentes. Cornélio segue exilado daquilo que se institucionalizou como a história marioandradiana da Semana de 1922.

Desde a morte de Cornélio, em 1958, a Prefeitura de Tietê promove regularmente a Semana Cornélio Pires. Na primeira edição do evento, em 1959, esteve presente Menotti Del Picchia, um dos cinco principais nomes da Semana de 22, que fez a conferência de encerramento, na qual realizou um balanço da obra do homenageado. Del Picchia, autor de"Juca Mulato", de 1917, é um dos que foi excluído ou diminuído da memória daquele movimento heroico.

A trajetória de Cornélio aponta para outras leituras possíveis e frequentemente esquecidas da Semana de 22. Resgatar o lugar de Cornélio na história cultural brasileira moderna é também repensar os marcos históricos através dos quais construímos nosso pensamento sobre o Brasil.

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