Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"
Torta na cara
Em uma comédia no teatro, participei de uma interessantíssima experiência de psicologia social
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Outro dia, indo assistir a uma comédia no teatro, participei de uma interessantíssima experiência de psicologia social. O público de comédia é bem específico. É um pessoal que não costuma ir ao teatro. Em muitos casais, você repara no marido um pé atrás. Ou dois. Ele preferia ter pedido uma pizza e estar assistindo a "Homem-Aranha no Aranhaverso", mas ela insistiu "Juro que não é chato! Você vai morrer de rir. É com o Mateus Solano e o Luís Miranda!".
Aí o marido, meio contrariado, toma um banho, bota uma camisa que há oito meses não sai do cabide e vai em frente. Este homem banhado, arrumado e levemente contrariado também é oprimido pela cortina de veludo e pelas poltronas de couro.
Num país ultradesigual como o nosso, a sacanagem não vem só da concentração de renda e das borrachadas da PM, mas também pelo nariz empinado da elite intelectual, que costuma produzir arte para poucos, mas isso é outra crônica. O que nos importa para chegarmos logo à experiência é que o homem médio se sente, na plateia do teatro, como o Homer Simpson num balé.
Some-se a isso a ameaça sempre presente de um ator te chamar ao palco, tacar um holofote na sua cara, te zoar na frente de 250 pessoas e o clima é, como já falei, de alguma apreensão.
Pois bem, toca o segundo sinal. Todos sentam-se, uma voz nos alto-falantes anuncia que a peça tem o patrocínio da empresa tal, tal outra e da doceria não sei das quantas, que escondeu embaixo de quatro poltronas cupons dando direito a uma torta grátis.
Imediatamente todos se inclinam e metem as mãos embaixo das poltronas: imediatamente o clima muda da água pro vinho. Relaxadas, as pessoas riem e puxam "Nada aí?", "Tenta mais no fundo!". Em torno dos que acham os cupons surge uma confraria, como se a mera proximidade com o ganhador desse aos vizinhos algum mérito. A pessoa que achou o cupom o mostra pros outros, orgulhosa. Alguém comenta que, naquela doceria, a torta de brigadeirão é a melhor.
Se a recém-formada comunidade pudesse resumir a experiência, diria algo como: "Nós não nos conhecíamos. Não sabíamos nada uns sobre os outros. Éramos 250 estranhos. Estávamos tensos e nos sentindo peixes fora d'água, num ambiente pouco hospitaleiro, num corpo a caminho da morte, num universo indiferente. Então soubemos que todos fazíamos parte de uma mesma tribo, a dos que querem ganhar torta grátis –e uma brisa soprou em nossos corações".
A postura "quero torta grátis", vinda de quem tem dinheiro para pagar pela torta, funciona como a admissão de uma falta, a aceitação de uma incompletude. Um blasé não procura cupom de torta grátis embaixo da poltrona. Curvado e tateando na penumbra, ninguém é arrogante. Botar a bunda pro alto em busca do cupom é uma saudável admissão da gula, da avareza –e possivelmente de um cofrinho.
É engraçado que o papel cumprido pelo cupom nesta pré-peça seja justamente o da comédia, quando ela atinge uma das suas funções mais nobres: mostrar que tá todo mundo zoado nesse mato sem cachorro. É o exato oposto de um linchamento, em que todos os defeitos da humanidade são depositados num outro, que deve ser sacrificado para expiarmos nossos pecados.
Eu sei que, segundo a física e a lei da entropia, o princípio básico do Universo é o desmantelo, que para baixo todo santo ajuda. Não venho aqui bancar o Poliana. Só queria compartilhar: às vezes, do nada, também, por uns instantes, uma coisa ou outra pode dar certo.
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