Descrição de chapéu Artes Cênicas

'Torto Arado' inspira 'Encantado', espetáculo de dança de Lia Rodrigues

Diretora partiu de mitos indígenas e africanos para criar a coreografia apresentada agora no Sesc Pinheiros

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São Paulo

Uma obra para 140 cobertores e 11 bailarinos. Essa é uma das frases repetidas pela coreógrafa e diretora Lia Rodrigues para falar sobre "Encantado". A criação mais recente de sua companhia estreou num festival no ano passado em Paris e inicia sua primeira temporada no Brasil nesta quinta-feira, no Sesc Pinheiros, em São Paulo.

Arrumados no palco quase como uma tapeçaria, os cobertores escondem corpos. Ao se desenrolar como uma jiboia, os bailarinos, até então invisíveis e isolados, surgem sob suas cobertas e se reencontram. No final, estão todos embolados num grande corpo coletivo.

Bailarinos da companhia de Lia Rodrigues em cena do espetáculo 'Encantado', inspirado no romance 'Torto Arado' e na 'ecologia decolonial' do caribenho Malcom Ferdinand - Sammi Landweer/Divulgação

Os cobertores surgiram num processo de criação muito usado por Rodrigues, no qual a coreógrafa e os intérpretes-criadores colecionam imagens até ser formado um grande painel que orienta e dá sentido ao espetáculo.

Quando "Encantado" começou a ser criado, Rodrigues viu a fotografia de um morador de rua enrolado em seu cobertor. "Não dava para ver a pessoa, nem se era uma pessoa, se via apenas a forma de um ser. Achei um cobertor na mala de figurinos de ‘Fúria’ [criação anterior, que será apresentada no mesmo programa do Sesc] e começamos a trabalhar com esse material", conta a diretora.

No mercadão de Madureira, na zona norte do Rio de Janeiro, foram comprados mais cobertores, todos muito baratos e coloridos, com estampas de flores, tigres, pele de onça. Com os produtos, os mesmos comprados por ONGs para serem doados a pessoas vivendo em situação de rua, as imagens começaram a ganhar corpo e movimento.

Rodrigues também parte de alguns livros para criar seus espetáculos. "Encantado" ganhou esse nome depois da leitura de "Torto Arado", de Itamar Vieira Junior. A terceira parte do livro é narrada por uma dessas entidades, os encantados. "Esta cosmogonia afro-ameríndia me ajudou a pensar como criar seres que se combinem e ‘descombinem’ para formar comunidades diferentes", diz Rodrigues.

Como as imagens, uma leitura puxa a outra, e vieram livros como os da filósofa e bióloga Donna Haraway, autora de "O Manifesto das Espécies Companheiras", estudos de antropologia e ciência ou vídeos como as conversas do ciclo de estudos orientado por Ailton Krenak na plataforma Selvagem.

No espetáculo, essas referências perdem a forma óbvia e reconhecível, como acontece com a imagem do homem enrolado no cobertor. "A gente passa por um livro e ele nos lança no mundo, abre um caminho. No palco, escrevemos juntos uma nova ficção", diz Rodrigues.

Segundo ela, também não dá para falar do novo trabalho sem pensar na crise sanitária causada pela Covid-19 e, especificamente, seus efeitos no território onde trabalha –a favela carioca onde fica a sede de sua companhia e a escola livre de dança do centro de artes Redes da Maré.

No início da pandemia, a Redes lançou o movimento Maré Diz Não ao Coronavírus, e o centro de artes onde a companhia ensaia se tornou o núcleo físico da campanha. Toneladas de alimentos e produtos de higiene para serem distribuídos a mais de 17 mil famílias foram armazenados no lugar. Em dado momento, o teto começou a ruir por causa de chuvas fortes. A reforma do telhado começou quando Rodrigues, que permanecera mais de um ano na Europa, voltou ao Brasil para retomar o trabalho presencial com os bailarinos.

"Tínhamos só uma cortininha separando milhares de pessoas entrando e saindo do centro, os caminhões descarregando as doações. E as obras no teto, o barulho de furadeira. Foi assim que ‘Encantado’ apareceu e não seria o que é se não estivesse mergulhado nesse território de solidariedade, de atuação política", diz a coreógrafa.

Todo esse encantamento, nas palavras dela, acontece com trabalho coletivo e apoios. Além da parceria com a Redes da Maré, a companhia teve patrocínio de cerca de 20 instituições europeias para produzir o espetáculo e poder continuar pagando os bailarinos durante a pior fase da pandemia. No Brasil, a única instituição que tem apoiado o grupo é o Sesc, segundo a diretora.

Artista associada do Théâtre National de la Danse e do Centquatre Paris, Lia Rodrigues foi uma das criadoras em destaque na 50ª edição do Festival d’Automne, realizado na capital francesa no ano passado. Os artistas escolhidos para os "portraits", ou retratos, costumam apresentar obras significativas de sua trajetória, mas Rodrigues fez diferente –convidou vários dançarinos brasileiros para se apresentarem na parte da programação do festival dedicada ao seu nome.

"Pensei em uma constelação ou mosaico. Quais vozes precisam ser ouvidas, diferentes da minha, mas que me dão vontade de continuar criando? Pensei também que, nesse momento, com esse desmantelamento da cultura no Brasil, é importante o mercado europeu conhecer obras de artistas brasileiros, abre oportunidades de trabalho."

"Encantado" foi a obra da Lia Rodrigues Companhia de Dança criada para estrear no festival parisiense, em dezembro do ano passado. Durante o processo de criação, o espetáculo tomou um caminho surpreendente para a coreógrafa.

"Tive de ficar muito atenta para entender o que os bailarinos estavam me falando, o que os cobertores estavam nos falando. No final, a dança se torna uma grande celebração. Pensei muito em um verbo usado por Paulo Freire, ‘esperançar’, que é mais do que esperar. É construção, de se juntar aos outros, levar adiante. Uma música que não está na trilha do espetáculo, mas nos inspirou bastante é um canto de mulheres da etnia huni kuin sobre a jiboia encantada que leva você adiante."

Na trilha, composta e mixada com Alexandre Seabra, são usados trechos de músicas do povo guarani mbya cantadas durante a marcha dos povos indígenas contra o marco temporal, realizada no ano passado, em Brasília. "Caminhemos sem impedimentos/ Vamos respeitar a força dos grandes guarani mbya/ fazer ouvir nosso canto", diz a letra, que, cantada em looping no espetáculo, "ajuda a gente a se encantar", segundo Rodrigues.

Encantado

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