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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Descrição de chapéu WhatsApp

Há males que vêm para o mal

A pandemia normalizou sabe o quê? Vou falar o quê: a praga da mensagem de áudio

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Desgraças passam, mas deixam lêndeas. O apagão de 2001. Pelejamos por meses, vivemos no breu, deixamos a árvore de Natal sem luzinha coreana, passamos frio, nos ensaboando com o chuveiro elétrico desligado. Aí o racionamento foi chegando ao fim e quando a luz surgiu no fim do túnel, tava meio estranha. Menos luz. Menos fim do túnel. Era de lâmpadas fluorescentes. Nunca mais saímos deste corredor de hospital/cartório/laboratório.

Luz fria: só o nome já gela a espinha. É a dieta celíaca das pupilas. Deve ter alguma relação entre o glúten e as lâmpadas incandescentes. Foram cancelados na mesma época. Glúten engorda. Lâmpada incandescente esquenta. A casquinha do pão francês saindo do forno é amarela e quente como era a cúpula de um abajur na casa da minha avó. Hoje a casa foi abaixo, o abajur não existe mais e, não raro, por cima das cúpulas dos abajures, lâmpadas halógenas de pescoços compridos nos espreitam, como sentinelas em torres da cadeia.

Ah, a pandemia vai nos fazer valorizar o contato humano! Ah, a pandemia vai nos ensinar a proteger a natureza! Ah, a pandemia vai mostrar ao mundo que a amizade, o convívio e o senso de comunidade devem prevalecer sobre a meritocracia de todos contra todos! Picas: a pandemia normalizou sabe o quê? Sabe o quê? Vou falar o quê, pombas: a praga da mensagem de áudio.

Antes da pandemia o WhatsApp era uma espécie de telégrafo. Daí virou conversa, reunião, trabalho, DR. Foi quando liberou o áudio. Estávamos tão exaustos de olhar pras telas que a praga do áudio correu no paralelo. Era, ao menos, um descanso para os olhos.

Agora, porém, estamos todos vacinados —os terraplanistas seguem morrendo como moscas, aliviados, quem sabe, por escapar do comunismo gayzista patrocinado pela Lei Rouanet dos quilombolas sustentados por ONGs interessadas no nosso nióbio. Pessoas sãs, contudo, tomando alguns cuidados, já podem ir se encontrar no bar, na praça, na esquina. A mensagem de áudio, no entanto, ficou para nos atazanar.

A gente lê bem mais rápido do que escreve. A gente também lê mais rápido do que fala, até porque no texto não tem "É..... Então... Tava aqui pensando que... Na verdade, eu já tinha pensado antes... Sabe o Rodrigo? Não o Rodriguêra do Logos, o Ro Brandão, namorado da Taninha... É... Peraí, tão me chamando, aqui — a azul, isso. Da direita —. Então, como eu ia dizendo...". O cara que manda áudio cobra de você, ao recebê-lo, o mesmo tempo que ele gastou para enviá-lo, o que é, no mínimo, folgado.

Mandar um áudio sem antes ter a delicadeza de perguntar "posso te mandar um áudio?" é como aparecer na casa de alguém, sem ser convidado, para o jantar. (Pensando bem, "posso jantar na sua casa?" também soaria folgado). Esqueça a imagem. Mandar um áudio é como segurar no ombro de um conhecido numa festa e desandar a falar de si próprio, sem ser perguntado.

Acontece tanto, isso, né? Às vezes a pessoa desanda a falar "então eu saí da USP e fui fazer uma pós na Unicamp. Naquela época eu tava muito interessado em papapa pipipi popopó". Até parece que o cara tá numa entrevista de emprego e você é o empregador. Nessas horas a vida fica tão enfadonha, você sente tanta urgência de sair dali —o cara ainda tá em 98, até chegar em 2022 a pista já esvaziou— que até dá vontade, por pior que seja, de pedir: "amigo, por favor, será que você pode me mandar um áudio?"

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