Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Descrição de chapéu alimentação

Pensamento cheddar duplo prensado

Meu erro foi dar like na foto de uma picanha

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Todo mundo sabe que os algoritmos das redes antissociais são ferramentas de radicalização. Quanto mais absurdo e violento o post, mais Ibope dá, de modo que a estratégia dos cretinos carcereiros destas prisões nas quais escolhemos viver estão sempre tentando nos levar mais pra perto do estrondo. Busque algo sobre "social democracia" e em alguns dias estará recebendo comentários elogiosos sobre os gulags. Digite "meritocracia" e num átimo estará lendo loas ao Pinochet. Meu erro foi dar like na foto de uma picanha: em muito pouco tempo minhas timelines viraram um rodízio de gororobas que só posso chamar de gastrobolsonarismo.

No início, confesso que aprovei o que os algoritmos me serviam. Gosto de cozinhar. Sou um churrasqueiro, modéstia à parte, bastante competente. Ver, entre fotos de gatos e da falsa felicidade alheia, um belo bife de chorizo na brasa, um galeto no espeto, animava a minha tarde. O algoritmo sabia disso. De pequenas postas fomos para costelas inteiras, de costelas inteiras para duas mil costelas assadas simultaneamente, em alguma cidade do interior paulista. Comecei a sentir que a coisa tinha ido longe demais quando apareceu no meu Insta a pizza de linguiça.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 29 de Maio de 2022, mostra o desenho de uns óculos com lentes de linguiças enroladas.
Adams Carvalho

A linguiça era não a cobertura, mas a massa. O cozinheiro desfez uma meia dúzia de calabresas, amassou a carne de porco moída e abriu. Sobre o gigante hambúrguer suíno —me recuso a continuar chamando de "massa"— o herege espalhou molho de tomate e queijo. Botou o monstrengo na grelha e já é.

Veja, eu sou carnívoro, sou até um pouco glutão. Mente aberta, vou do hambúrguer com batata frita às ovas de tainha, sem condenar o cream-cheese no sushi. Acontece que tenho alguns princípios —não muitos— que entram em conflito com as trasheiras que, de umas semanas pra cá, os algoritmos postam à minha mesa.

X-saladas com 6 hambúrgueres. Batata frita coberta com quatro queijos e chile com carne. Picanha coberta com provolone derretido. Quando chegamos na porcopizza (um leitão aberto era a "massa"), achei que não tinha mais pra onde ir. Ledo engano. O fundo do poço seria "O dogão de Curitiba".

O vídeo é confuso e nem todos os ingredientes são nomeados —até porque boa parte deve ser proibida, senão pela OMS, pela convenção de Genebra. Em nome do avanço da civilização e da preservação de nossas artérias, contudo, tentarei dar uma ideia do que vai neste sanduíche (sic, sick) de 1,7 kg.

O chapeiro começa fazendo uma mistureba com calabresa fatiada, milho, batata palha, queijo ralado, bacon, molho de tomate e cheddar de bisnaga. Depois, abre um pão de cachorro-quente, pavimenta com maionese, molho rosé e ketchup. Coloca duas salsichas, estrogonofe de frango, Catupiry e a gororoba previamente misturada —uma pirâmide de uns dez centímetros de altura por dez de diâmetro. Joga por cima farofa, masseia com purê de batata, decora com mais rodelas de calabresa, espreme mais cheddar e queijo muçarela ralado, aí gratina com um maçarico.

O dogão de Curitiba foi meu terraplanismo gastronômico, a mamadeira de piroca culinária oferecida pelo chef Zuckerberg e seus comparsas, segundo meus inputs. Se eu tivesse dado like não numa picanha, mas em "luta identitária", estaria recebendo um cardápio com fuzis, grupos neonazistas e Ku Klux Klan. Não sei o que tem que fazer, nem como, mas precisamos encontrar uma forma de parar de nos alimentar de ideias tipo o dogão de Curitiba, ou seguiremos com esses debates obesos e desnutridos.

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