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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Num país decente

Não é muito o que a gente precisa para ser feliz, é? Poder tomar um café numa praça, pegar as crianças na escola, encontrar os amigos

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Seis e pouco da tarde, trabalho na varanda de um café. Do outro lado da rua, numa praça, três casais se encontram. Trazem consigo umas sete crianças. Imagino que as tenham ido buscar na escola. Há uma escola pública a uns quarteirões dali.

O prédio, de uns duzentos anos, contrasta com o parquinho colorido, novo em folha, no quintal. O contraste me dá uma esperança, uma fé na permanência, como se o país estivesse sendo mantido, construído, melhorado.

Se tirasse uma foto do escorregador vermelho e azul com a construção secular ao fundo eu daria a legenda "As instituições estão funcionando". É pra isso que elas existem, não é? Instituições são entidades conservadoras, na melhor acepção do termo.

Em última instância, a harmonia entre os poderes, assim como os freios e contrapesos da democracia, servem é para garantir que haja, em segurança, crianças correndo por praças e um sujeito com o notebook escrevendo na calçada.

Os adultos devem ter uns trinta, trinta e cinco anos. As crianças devem ter entre cinco e dez. Enquanto os pais e mães conversam de pé, a molecada se dispersa e corre entre os bancos e as árvores. Nenhum dos adultos parece minimamente preocupado com a segurança dos filhos. Nenhum dos filhos parece minimamente preocupado com a supervisão dos adultos.

Os adultos sentam-se nuns bancos. Numa das passagens das crianças (parecem estar brincado de uma versão portuguesa do pega-pega), uma das mães consegue dar maçãs para três, água para outros dois, os dois últimos escapolem.

Pergunto-me se é uma rotina daquelas famílias. Toda tarde ou toda quinta, pelo menos, param ali na praça. Trocam ideias.

Talvez um dos casais mude de cidade. Talvez uns daqueles meninos fiquem anos e anos sem se verem e em algum dia em 2034, sei lá, se encontrem, se reconheçam, recordem desta tarde. "Era no Mirante das Portas do Céu?", um deles pergunta ao outro, lá em 2034.

Da minha mesa no café, em 2022, balbucio, vendo-os passar zunindo: "Era no Mirante da Graça". Sigo ali por meia-hora, tomando meu café, os olhos oscilando entre a tela do computador e a cena à minha frente.

Os adultos conversam. As crianças correm. O sol se põe sobre o Tejo. Sou tomado por uma melancolia que diria ser tipicamente lusitana —não fosse a origem dela 100% brasileira. A cena não é bonita "apesar" de ser banal. É bonita justamente por ser banal: que inveja da banalidade.

O objetivo final da civilização deveria ser o tédio. O tédio é o antípoda da barbárie. Não é muito o que a gente precisa para ser feliz, é? Poder tomar um café numa praça. Ir pegar as crianças na escola. (O que pressupõe, claro, haver praças e escolas). Encontrar amigos na volta. Deixar os meninos correrem em paz.

No Brasil de hoje, parece uma utopia —comunista, talvez, de acordo com o delírio bolsonarista. A besta do Tarcísio de Campos dos Elíseos quer acabar com a obrigatoriedade das vacinas.

Pela liberdade de espalhar poliomielite! Pela volta do sarampo! Pelo direito de matarmos nossas crianças sem interferência do estado! É a ROTA na rua e o rotavírus nas veias!

Tom Zé já cantava: "Vejam que beleza/ a burrice está na mesa". Os casais juntam suas crianças e vão-se embora. Escurece. Eu peço a conta. Uma senhora surge numa janela. Pendura ceroulas no varal, pigarreia e grita pro garçom do café: "Ó, Almeida! Manda duas tostas mistas e um expresso! Obrigadinho!". As instituições estão funcionando.

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