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Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Apocalipse climático

Ao contrário do que aparece na caixa, o 'ar-condicionado portátil' não o é

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Eu deveria culpar a marca de eletrodomésticos pela humilhação, mas a culpa inculcada em mim pelo capitalismo tardio insiste em garrotear minha traqueia. (Não sei exatamente o que seja "capitalismo tardio", mas citá-lo, assim, como quem acabou de ler Byung-chul Han, dá todo um peso à crônica —e peso é um dado inseparável da supracitada humilhação).

"Vinte e oito quilos quatrocentos", anunciou, bufando, o funcionário dos Correios, enquanto equilibrava a enorme caixa bamboleante sobre uma dessas balancinhas de pesar envelope. Na face do sarcófago de papelão, lia-se: "ar-condicionado portátil".

O leitor ingênuo pode crer, como eu, que ao abrir uma caixa onde se lê "ar-condicionado portátil" irá encontrar, ora, um "ar-condicionado portátil". Vejo que você, como eu, não tem lido Byung-Chul Han, nem Michael Hardt & Antonio Negri, nem Proudhon & Malatesta, nem Marx & Engels e nem, principalmente, o manual de instruções do "ar-condicionado portátil".

Tivesse eu lido tal compêndio e saberia que, ao contrário do que aparece na caixa e no site, o "ar-condicionado portátil" não o é. De sua traseira sai um tubo de mais de um metro de comprimento por uns 20 cm de diâmetro e que precisa ser –atenção para o termo no manual– "instalado" na brecha de uma janela, com a ajuda de uma placa de ferro.

Reclamei e a loja aceitou devolver o dinheiro, bastava eu despachar a geringonça pelo Correio –e foi aí que começou o meu calvário. Certo tipo de encomendas, descobri na agência, só pode ser despachado embalado em papel pardo, mas os Correios não dispõem de papel pardo nem –mais importante– do serviço de embalagem. Quando você é dotado de duas mãos esquerdas, tem uma caixa de 87 cm x 63 cm x 49 cm em cima do balcão e precisa embrulhá-la com vinte folhas de 20 cm x 40 cm (era só o que tinha na papelaria), percebe que as próximas duas horas serão de pura diversão –pra todos em volta.

Depois de cinco minutos tentando achar a ponta da fita adesiva –como é que o capitalismo tardio ainda não resolveu isso, minha gente?– notei alguns olhos curiosos por trás dos celulares. (Chocados, quem sabe, com a minha incompetência?). A prestativa funcionária Regina, compadecida de mim, me emprestou a fita dela, já com a pontinha solta e colada sobre si, feito a barra de uma calça. (Fica a dica, capitalismo tardio).

Meu desafio era mais ou menos como embrulhar uma caixa de Barbie só com post-its. Pior, porque os post-its já vêm com a cola, enquanto eu tinha que usar a fita da Regina, que não levei nem dez minutos (e apenas três papeis pardos) pra perder a ponta. Regina me olhou com a calma psicopata de um bicheiro em "Vale o Escrito": "você não perdeu a ponta da minha fita, né, meu bem?". Só faltei ganir como um cão que fez xixi no sofá. Ela tomou a fita da minha mão, jogou na gaveta e, enquanto eu ainda nutria alguma esperança da Santa Regina dos Correios me arrumar outro rolo, olhou pro lado e mandou: "Senha A67, caixa dois!", abandonando-me à própria sorte.

É nas horas de crise, porém, que os homens se dividem das crianças. Pois a criança aqui resolveu desistir da fita e pegar um daqueles potes de cola com pincel dentro. É uma substância curiosíssima: colava minha mão na caixa, minha blusa no balcão, meus tênis no chão, pedacinhos de papel pardo por todo o meu corpo, menos a porcaria dos papéis sobre a caixa. Pior, colou definitivamente todos os olhos em mim. Eu era um farrapo humano. Um personagem de cartoon mergulhado no pixe e empanado em penas. Só havia uma saída.

Caro leitor, cara leitora: vendo ar-condicionado-semi-portátil, sem uso. Entrego em domicílio. Único dono. Cartas à Redação.

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