Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Quem pode sonhar com uma vida que não seja escrava da ação? Os ricos

A vida contemplativa é um clássico da literatura espiritual e também um tema essencial entre cansados como nós

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A vida contemplativa é um clássico da literatura espiritual. Vista como um modo sublime de estar com Deus, de ascese mística, ou, simplesmente, de se proteger da invasão da vida pelo mundo e seu "páthos da ação" —obsessão apaixonada pela ação—, ela é um tema essencial entre cansados como nós.

"Páthos da ação" é um conceito que o crítico cultural sul-coreano, radicado em Berlim, Byung-Chul Han trabalha no seu livro recém-publicado no Brasil "Vita Contemplativa ou Sobre a Inatividade", da editora Vozes.

Antes de tudo, vale lembrar que a crítica cultural é muito rara no Brasil. Aqui se prefere a crítica ideológica ou simplesmente político-partidária, mais pobre de espírito e militante.

A Vida contemplativa  A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica mista: fundo manchado em pastel oleoso cor de rosa intenso e vermelho, sobre papel, com imagens e traços digitais em preto chapado.  A imagem horizontal, na proporção 17,5cm x 9,5cm, não apresenta uma narrativa linear e lógica. Trata-se de uma composição com vários elementos estilizados em preto: um perfil de uma cabeça, pássaros voando, uma figura com uma árvore seca na cabeça, escadas tortas em várias direções, perfil em preto chapado de pequenas figuras humanas sobrepostas, rabiscos em traços incertos, nuvem preta e uma estrela branca de fundo.
Ilustração de Ricardo Cammarota - Folhapress

Crítica cultural vai mais fundo e trata de todo e qualquer produto objetivo da consciência e da sociedade como objeto, sem preferência ideológica ou agenda escondida político-partidária. A crítica cultural não perdoa ninguém, por isso pode ser objeto de ódio por todos os lados do espectro político.

Byung Chul-Han emplacou um golaço em 2010 com o seu "Sociedade do Cansaço", também da editora Vozes, muito antes do burnout virar produto da cultura de consumo e das modas de comportamento e de riquinhos com mal-estar com suas vidas entediadas pelo excesso de trabalho.

Assim como o próprio "Mal-estar na Cultura" de Freud —"Mal-estar na Civilização", no Brasil—, o conceito de sociedade do cansaço se constitui numa rica hermenêutica de análise dos excessos de positividade da sociedade contemporânea —a psicologia positiva está aí para reforçar a hipótese diagnostica do crítico, apontando para um "páthos da positividade" em nossos tempos.

No último livro ele avança para fazer um elogio claro e filosoficamente sustentado da recusa da positividade contemporânea como modo de estar no mundo, agora identificada com a obsessão pela vida ativa —o tal "páthos da ação" referido acima.

Apesar de ter 174 páginas num formato pequeno, o livro é uma obra de fôlego, e, suspeito que algum fã desavisado do autor, sem um sólido repertório filosófico, ficará a ver navios, enquanto se afoga em meio a complexa teia de conceitos que ele vai montando de modo cuidadoso.

Caso ele fosse aluno do meu querido e saudoso professor Rui Fausto —de quem tive a sorte de ser aluno na USP e em Paris 8—, escutaria do mestre sua famosa frase sobre textos excessivamente densos: "ponha mais água nesse vinho".

Umas páginas a mais daria mais fôlego para o leitor amador —e, vale dizer, o tema acomete todo tipo de gente— perceber que ele está falando do seu dia a dia. De Deleuze a Benjamin, de Adorno a Nietzsche, de Blanhot a Novalis, de Höderlin a Heidegger, de Flusser a Heschel, de Marx a Musil, entre outros, enfim, a sequência de referências de autores de primeiro time avança de modo impiedoso.

Há, especificamente, uma preocupação muito claramente típica dos europeus ocidentais —diria, dos ricos em geral— com os excessos da ação humana focada na produção e seus efeitos na natureza em geral.

O percurso que faz Byung Chul-Han nesse assunto é muito próximo do que Pierre Hadot (1922-2010) chamava de oposição entre uma concepção de natureza prometeica —intervencionista— e uma órfica —contemplativa—, que, segundo Hadot, vem desde a Grécia antiga, daí os títulos dados as duas concepções opostas.

Para além do fato de que o diagnóstico do crítico está corretíssimo, e de que o capitalismo —mas também o finado comunismo soviético— respira esse "páthos da ação", há um resíduo social, político e econômico, que coloca uma questão para qualquer defesa da vida contemplativa hoje em larga escala —para além de pessoas de vida religiosa contemplativa "profissional".

Essa discussão está bem ambientada num país rico e organizado como a Alemanha e similares. Em se tratando do Brasil e similares, essa discussão é chique como uma bolsa Prada. Quem pode conceber uma vida real cotidiana em que a inatividade seja uma escolha possível? Afora jovens das classes altas, quem mais pode sonhar com uma vida que não seja escrava do "páthos da ação"? Ninguém.

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