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Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia

Presos na máquina do tempo

Regredimos no combate a vírus e no conhecimento sobre prevenção e tratamento

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Em 2020, nós entramos em uma máquina do tempo da pandemia. Pudemos acompanhar de cá os primeiros focos da doença em outros países. Ver notícias era como viajar no tempo e entender o que poderia acontecer no futuro.

Foi essa possibilidade que nos ajudou a fechar antes do pior. Não precisamos repetir as cenas da Lombardia ou de Nova York. Apesar do estrago em regiões como Manaus, São Paulo e Rio de Janeiro, o coronavírus se espalhou bem mais lentamente do que poderia se as pessoas não tivessem ficado em casa.

Mas em pouco tempo o negacionismo alcançou a realidade e a situação mudou. Depois de trocas de ministros da Saúde, o governo passou a promover o contágio e a "imunidade coletiva" como forma de combate à pandemia --estratégia análoga a sugerir a um alcoólatra resolver o seu problema bebendo toda a cachaça do supermercado. Com isso, nossa máquina do tempo engatou a ré. O Brasil hoje vive em um passado pavoroso.

No final de 2020, ignoramos a visão do futuro que a Europa nos dava, com uma segunda onda pior do que a primeira. Ignoramos até o passado. Nosso conhecimento regrediu para antes da pandemia de H1N1 de 2009, quando compramos vacinas contra a gripe ainda em novembro, para serem entregues até março de 2010 e aplicadas às dezenas de milhões nos próximos três meses.

Regredimos o avanço de campanhas de combate e prevenção da dengue, nas quais centenas de milhares de agentes comunitários visitam casas para encontrar focos do mosquito, e testes no posto de saúde guiam decisões de quais bairros são mais afetados. Ainda temos milhões de testes para Covid-19 estragando e não fomos capazes de isolar doentes e prevenir a transmissão comunitária. Regredimos todo o avanço da campanha contra o HIV promovida desde o final da década de 1980, que foi bem explícita sobre as formas de contágio e a necessidade de uso de preservativo.

O anseio de alguns de voltar para 1964 é tão forte que voltamos ainda mais. Adotamos o tratamento precoce com kit Covid como política oficial de saúde pública. Isso nos leva para antes de 1943, quando a ação da patulina (um extrato de fungos) contra a gripe foi posta à prova no primeiro teste clínico duplo-cego controlado. Isso quer dizer que um grupo de pacientes tomou patulina enquanto outro tomou placebo, um remédio falso sem ação, para saber se ela era eficaz contra a gripe. Nem os pacientes nem os médicos acompanhando seus efeitos sabiam quem havia tomado o quê.

Testes desse tipo já demonstraram que o engodo do kit Covid não funciona contra a Covid. Mas ignoramos esse avanço e promovemos uma cura mágica que dá uma falsa sensação de segurança enquanto destrói fígados, rins, corações e as famílias dos "tratados". Um pé de coelho seria mais seguro.

Ao ignorar máscaras e distanciamento, voltamos para antes da gripe de 1918, quando as pessoas já usavam máscaras e quando as cidades que se fecharam tiveram menos casos.

Agora vem o resultado: variantes que preocupam o mundo e um tsunami de casos de Covid-19 que colapsou nosso sistema de saúde. Muitas cidades não têm leitos de emergência para alguém que se acidenta de carro ou para um apêndice rompido, quem dirá acessos às UTIs, desenvolvidas durante a década de 1950.

Sem tratamento, sem leito, sem oxigênio e sem dignidade, a mortalidade da Covid é ainda maior. Nossa máquina do tempo nos trouxe ao século 18, antes da invenção da medicina moderna. No ano 1 da pandemia, veremos mais mortes do que no ano 0. Mortes evitáveis. Apesar das vacinas. Um símbolo triste do retrocesso do Brasil.

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