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Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

Escultura abre espaço para arqueologia num quintal da Paulista

'Echo', de Richard Serra, torna pública a lógica discriminatória do privado

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Saindo de um jantar, há alguns meses, pouco depois de Bolsonaro ter sido eleito, dei carona a uma amiga que mora num bairro de classe média alta. Quando estávamos chegando ao edifício dela, minha amiga estranhou a presença de três seguranças mal-encarados na calçada. Estavam lá para controlar a entrada dos convidados de um dos apartamentos.

Parei o carro na rua, diante do prédio, e ficamos conversando antes de nos despedir. E enquanto conversávamos, um dos seguranças se aproximou para pedir satisfações. Abri a janela para saber o que ele queria. “Vocês não podem parar aqui”, ele sentenciou, desafiador. Por quê? “Porque aqui é passagem de VT”, respondeu, na caradura, suponho que se referindo à “viatura” em jargão policial.

Respirei fundo e respondi que a rua era pública e que eu tinha o direito de parar onde o estacionamento de carros não fosse proibido por lei.

Escultura ‘Echo’, de Richard Serra - Cristiano Mascaro/Instituto Moreira Salles

Os dois seguranças de retaguarda já estavam prontos para entrar em ação e vir em auxílio do colega quando minha amiga desceu do carro para saber com o porteiro o que afinal estava acontecendo. Em segundos, ao se darem conta de que ela era moradora do prédio, mudaram de planos e de tom.

Os dois da retaguarda retrocederam contrariados pela ressignificação das circunstâncias segundo a hierarquia de classes (embora mantendo a mesma expressão de desafio, porque ninguém é de ferro, como já prevê o chamado “excludente de ilicitude” defendido pelo ministro Sergio Moro), enquanto o que estava ao meu lado desfiava um rosário de desculpas e se retirava em salamaleques subservientes.

A cena me voltou à cabeça diante da escultura monumental de Richard Serra recém-instalada nos fundos do prédio do IMS na avenida Paulista, num terreno exíguo que a crítica Sônia Salzstein, durante a abertura da obra ao público há duas semanas, não hesitou em comparar, com excepcional propriedade, a um quintal e a tudo o que ele significa na tradição cultural luso-brasileira.

Ao contrário de outras peças monumentais do escultor americano, “Echo” foi cravada num espaço tímido, recôndito e desprezível. Um lugar impróprio para monumentos, equivalente ao quintal que no passado dessa mesma avenida era reservado aos serviços e àqueles que não tinham direito pleno, os que viviam sob a tutela do dono da casa: mulheres, serviçais, crianças e animais.

A peça não está diante do edifício, como um obelisco heroico na calçada da Paulista, a contribuir com sua magnitude para o engrandecimento simbólico desse eixo monumental, representação gloriosa do capital em suas diversas reconfigurações ao longo da história do país, em comemoração a algum ponto alto da narrativa oficial da nação.

Costuma-se dizer que a escultura pública recria o espaço urbano, como a arquitetura. Confinada ao “quintal” do IMS, porém, a escultura de Serra recria o espaço, mas desta vez sem heroísmo, nos fundos, como arqueologia. A lógica de sua concepção e disposição física, ligeiramente inclinada, a produzir uma desestabilização discreta, e sobretudo sua presença monumental (duas placas de aço, de 70 toneladas e 18 metros de altura cada) num buraco, um vão entre os prédios, como uma preciosidade despontando entre os escombros de um sítio arqueológico, converte o entorno em ruína.

O pedágio privado do espaço público faz parte de uma concepção de sociedade com a qual estamos familiarizados desde há muito no Brasil, com consequências trágicas, como pudemos ver recentemente em portas de supermercado, mas que sempre esteve mais ou menos dissimulada sob o verniz da lei e do Estado de Direito. A partir do momento em que o próprio Estado ou quem quer que o represente passa a conceber e até justificar abertamente a lógica de exceção das milícias como alternativa à segurança pública, passamos a um novo estágio.

Não se trata de atribuir à escultura de Serra uma consciência ou representação direta desse estado de coisas ou ainda menos reduzi-la a uma intenção militante, mas, pela tensão que ela estabelece ao tornar público o que havia de mais recôndito na lógica discriminatória do privado, fica difícil não reconhecer aí algum tipo de subversão dessa mesma lógica.

É difícil não considerar, diante das duas placas ligeiramente fora de prumo e de correspondência, como duas lâminas gigantescas que estivessem na iminência da queda, o desmoronamento do mundo ao redor, o mundo que construímos ou deixamos construir por omissão ou interesse pessoal e pelo qual agora estamos pagando. Um mundo que já não distinguimos da nossa própria ruína.

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