Descrição de chapéu Tragédia em Brumadinho

Engenho que gera obra de arte também produz tragédias como a de Brumadinho

Arquiteto narra implantação de megaescultura de aço em SP poucos dias após tragédia em MG

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Giovanni Meirelles

[RESUMO] A partir da instalação de esculturas de aço de Richard Serra, um dos principais artistas contemporâneos, arquiteto reflete sobre a exploração de recursos naturais que resultou na tragédia de Brumadinho (MG).

 

Um mês atrás, em 2 de fevereiro, saí de casa pela manhã e me deparei logo em seguida com a rua Bela Cintra interditada para veículos no trecho entre avenida Paulista e rua Luís Coelho.

Após um estranhamento inicial com a quantidade de trabalhadores, veículos técnicos e equipamentos diversos, foi possível perceber que se tratava das operações de implantação da dupla de esculturas de aço (“Echo”) de Richard Serra, escultor norte-americano, nos fundos do terreno do Instituto Moreira Salles, situado na avenida Paulista. Processo que durou todo o final de semana.

Peça de aço que compõe a escultura "Echo", de Richard Serra, é levantada para sua instalação no Instituto Moreira Salles, em São Paulo
Instalação da escultura "Echo", de Richard Serra, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo - Cristiano Mascaro/Instituto Moreira Salles

Arquitetos, como eu, costumam ser atentos aos efeitos da gravidade. É uma das forças primordiais com as quais lidamos em nosso dia a dia de trabalho. Alguns, ainda que necessariamente atentos, se tornam reféns dos limites impostos por ela. Outros lhe dão forma. Memorável. Mas isto é outro assunto. O fato é que fiquei ali, ao menos uma hora, num sol quase a pino de 35 graus, avaliando a orquestração rigorosa para fazer com que duas barras de 18 metros de comprimento, três metros de largura, 20 centímetros de espessura, resultando 70 toneladas cada uma, fossem içadas e colocadas naquele estreito espaço disponível nos recuos do terreno do museu.

Cento e quarenta toneladas totais de pé. Não de qualquer forma, mas de uma forma que culturalmente chamamos de escultórica.

Durante aquele meu tempo, foi inevitável pensar: que razões nos fazem mobilizar tamanho esforço?

O slogan de uma das empresas responsáveis pela operação era “movimentação de cargas complexas”. Membros do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo), devidamente identificados pelo logotipo em suas camisas, acompanhavam a operação. Profissionais da CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), do Corpo de Bombeiros, da Polícia Militar, dialogavam entre si.

Não pude perceber a presença de Serra (como muitos sabem, ele é considerado um dos principais escultores da atualidade), mas, a julgar pelo idioma inglês escutado, parte de sua equipe de engenheiros e técnicos estava obviamente presente na Bela Cintra naquele momento. O local, como se vê, apresentava uma congestão de competências técnicas.

A obra em geral de Serra conforma e tensiona espaços. Pela dimensão, pelo peso e pela geometria de suas peças, não só o espaço, mas também a gravidade se torna elemento de tensão. Aquelas duas barras verticais do IMS, porém, nos deslocam do campo espacial e estético e nos transportam para um campo de julgamento também técnico. Expressão da consciência formal do artista, elas são muito contundentes: "Como é que vieram parar aqui, assim?”. 

Muito propriamente, a minha memória será sempre carregada pela experiência diante da organização complexa para que elas estacionassem daquele modo, como que transcendendo os limites impostos pelo espaço exíguo e pela gravidade. A empresa de transporte, os bombeiros, os engenheiros de Serra, todos estarão presentes na beleza rigorosa daquela obra.

Triste, contudo, foi ter me lembrado de algumas outras coisas enquanto o sol forte tornava mais difícil que o pensamento flutuasse para além da Bela Cintra. A consciência daquela matéria em celebração, o aço, liga metálica composta essencialmente de minério de ferro, tornou próxima a realidade dolorosa de uma semana muito chocante. Dois momentos e eventos bastante opostos se encadearam numa linha de raciocínio que se cristalizava em metal.

As forças que mobilizam quase 140 toneladas de minério de ferro para que fiquem de pé são muito diferentes das que fazem milhões de toneladas de resíduos de sua extração escorrerem território abaixo. As convocações técnicas, uma virtuosa, outra ultrapassada, são nitidamente distantes. O conhecimento e competência técnica também estão presentes, potencialmente, na mineração brasileira, mas existem outras proximidades, e elas são de razão financeira. Mobilizada por muitos de nós.

A família mecenas que colocou dois monolitos de Richard Serra na avenida Paulista tem sua riqueza provinda em grande parte da mineração. De nióbio, um metal muito valorizado na produção das ligas de aço. Assim como a família proprietária do Centro de Arte Contemporânea Inhotim, complexo museológico magistral localizado na mesma cidade da tragédia em lembrança.

Fluxos financeiros extraídos de um campo de conhecimento ancestral e que se concentrou em algumas famílias brasileiras, por exemplo, próximas da arte. O que se coloca como raciocínio aqui, entretanto, não é a mera associação destas duas famílias frente a uma tragédia sobre a qual não têm responsabilidade. Seria oportunismo retórico, argumento frágil para fins quaisquer. Estas famílias e suas mineradoras surgiram do fluxo de consciência sobre uma forma técnica e material em exibição pública. E o ferro era o metal da vez, para o bem e para o mal. O que cabe pensar é que milhões de outras famílias brasileiras e estrangeiras também são sócias da mineração, ainda que noutra escala. E o são por razões que agora se colocam em questão.

Quantos de nós, ou pessoas que conhecemos, financiaram as operações que resultaram em Mariana e, no final de janeiro, em Brumadinho? Que informações fomos buscar para nos dar a segurança de que estes depósitos de confiança eram sustentáveis, em todos os sentidos? A riqueza que compartilhamos dos dividendos desta atividade empresarial esteve submetida a algum tipo de juízo ético? Ou podemos simplesmente dizer que desconhecíamos o ranking que colocava a Vale como a pior empresa do mundo já há alguns anos atrás? Analistas financeiros jovens e orgulhosos dando entrevistas sobre como investir até bem recentemente são o registro histórico de que, hoje, deveríamos ter vergonha de responder à maioria das perguntas anteriores.

Angelo Bucci, importante arquiteto brasileiro, cita sempre que pode: “Vivemos em um tempo com abundância de recursos, mas carente de sentidos”. Contradições são parte inerente de um mundo interligado e complexo. É difícil “fechar a conta”. Mas, enquanto a nossa consciência não for capaz de perceber que rejeitos de lama não escorrem apenas em função das forças impostas pela gravidade, e que estamos todos nós, de algum modo, presentes nas pressões que fazem estas tragédias acontecerem, acredito que haverá pouca sensibilidade para a matéria e a virtuosidade sintetizadas em arte, como a de Serra.

"Echo", através da sua força de obra aberta, poderia ser um símbolo daquilo que se repetiu, mas não deveria. Um alerta sobre nossa falta de sentido, algo que temos medo de reconhecer. Sirenes mudas.


Giovanni Meirelles é arquiteto.

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