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Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

Descrição de chapéu Filmes LGBTQIA+

Ao contrário do sagrado, evangelização é um mundo de possibilidades restritas

Longa 'Folhas de Outono' se aproxima tanto do humor crente de Almodóvar quanto da austeridade de clássico dinamarquês

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Reivindicar a presença de fiéis desta ou daquela igreja entre artistas e escritores para fazer representar a fé nas artes é tão pouco honesto quanto contar com juízes membros desta ou daquela igreja para aplicar a justiça divina entre os homens. Nas artes como na Justiça (e também na política) os mais próximos de Deus costumam ser os que menos evocam seu nome.

Um clássico do cinema dinamarquês, de 1955, trata precisamente dessa contradição do sagrado. Assim como Deus (e ao contrário do que costuma supor a crença), o sagrado nunca está apenas onde é nomeado. Está em todas as coisas, onde (e porque) ele não se nomeia. Deus não precisa ser representado aqui e acolá, a menos que já não esteja em toda parte, como aliás quer a Igreja.

Em "Ordet" ("A Palavra"), de Carl Theodor Dreyer, o louco é quem está mais próximo de Deus. Aquele que ninguém ouve. É ele que vai ressuscitar uma mulher pela força da palavra em que ninguém crê, num mundo de crentes. É porque ninguém ouve essa palavra que ela é sagrada e portadora da fé. Nesse paradoxo, as artes têm a ver com a religião. E o cinema em especial. O sagrado está no não dito, onde menos se espera.

Lembrei de "Ordet" assistindo a "Folhas de Outono", o drama operário finlandês de Aki Kaurismäki, prêmio do júri no Festival de Cannes. O filme não faz menção a nada minimamente religioso. Nada além do cartaz de algum filme de Robert Bresson na antessala do cinema onde o casal de protagonistas se perde e se reencontra.

Cena de 'Folhas de Outono', de Aki Kaurismaki - Divulgação

O cinema é uma presença central, fantasmática, que faz crer no impossível, no reencontro. É o princípio do melodrama. Entre as citações cinematográficas explícitas, a certa altura a operária, como o louco em "Ordet", desperta com um beijo, do coma, o desempregado que ela ama sem nunca o ter dito.

"Ordet" foi baseado na peça do pastor Kaj Munk, morto pelos nazistas em 1944. Dreyer, que acabaria louco, atribuía o fascínio da peça à insolência com que ela "expunha teses paradoxais". "Ordet" encena na sua austeridade crente um mundo onde tudo é verossímil e possível, simples e maravilhoso. Nada é absurdo, nada é impossível. É o mundo do sagrado, do cinema e da fé.

Nesse sentido, "Folhas de Outono" se aproxima, no seu aparente desencanto frio e setentrional, tanto do humor crente de Almodóvar quanto da austeridade febril de Dreyer. É um melodrama ao mesmo tempo fleumático e cômico, onde tudo é inversão e paradoxo. As desgraças e as infelicidades são tão terríveis e cumulativas quanto reversíveis e risíveis. Como o sagrado, o humor fala pelo não dito, onde menos se espera.

E aí voltamos a quem fala em nome das igrejas. Foucault mostra em "As Confissões da Carne" (quarto volume de sua "História da Sexualidade") como o cristianismo precisou se imiscuir na intimidade e legislar sobre a vida privada para realizar um projeto de poder para além de sua circunscrição.

A pauta dos costumes é intrínseca à evangelização. O combate ao universo LGBTQIA+ (as contradições desse combate e sua inevitável hipocrisia) é parte essencial de um projeto de poder que oferece a confissão e a conversão como única salvação possível. Ao contrário do sagrado e do cinema, é um mundo de possibilidades restritas.

Em entrevista recente ao Libération, a professora de direito público Stéphanie Hennette-Vauchez explica que a laicidade na França está baseada num tripé criado por lei, em 1905: a) separação das igrejas e do Estado; b) garantia de liberdade de culto e c) neutralidade do Estado e da ação pública.

Diante da ameaça da extrema direita, entretanto, os franceses meteram os pés pelas mãos, recorrendo a um sistema de dois pesos e duas medidas, passando a aplicar o princípio de laicidade como norma contra manifestações religiosas selecionadas (o islã, mais especificamente) não mais no exercício da ação pública mas no convívio social.

No Brasil, o princípio do Estado laico nunca foi estritamente aplicado, haja vista os crucifixos que decoram desde sempre as salas dos três Poderes. O problema hoje é de outra ordem, já que a religião passou a reivindicar abertamente a palavra, como poder, de dentro do serviço público.

Se há quem ache isso, senão natural, plenamente negociável, é porque supõe que não tenha nada de vital a perder com a impostura do sagrado convertido em restrição interessada, normatização da vida privada. Mas tem de ter muita cara de pau para propor submeter também as artes à restrição, agora em nome da democracia representativa.

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